Meu irmão Carlos se foi numa tarde de sábado. Empinando pipa e olhando pro céu, não viu o poço que o engoliu. Tinha apenas sete anos.
Minha melhor amiga da infância, Rosana, seguiu o mesmo caminho após dois meses.
Desapareceu nas águas da represa de Furnas, em Minas. Tinha dez anos.
Minha prima Katia deixou a vida meses depois, durante o Carnaval, também de forma abrupta, vítima de uma hepatite fulminante. Tinha 11 anos, minha idade na época.
Ser apresentada à morte numa fase tão precoce da vida deixou cicatrizes, é óbvio, mas também abriu outras janelas.
A principal delas foi passar a conviver com os meus mortos sem medo e reconhecê-los nas pequenas alegrias da vida. A cada pelada de moleques, lá está o Carlinhos afoito atrás da bola, pronto pra marcar um gol e gritar: gol do Pelé!
A cada encontro delicioso com as amigas, imagino a Katia e a Rosana por lá também, rindo das minhas palhaçadas, chorando com os meus dramas.
Com o passar do tempo, mais mortos foram sendo incorporados no meu dia a dia. Nas manhãs, a caminho da ioga, posso sentir o cheiro dos pastéis da tia Delza. Vez ou outra no elevador, o aroma da abobrinha da vó Isabel vem acariciar o meu olfato. Ouvir um forró me remete aos almoços dominicais na casa vó Vinvin. Quando sinto o perfume da dama da noite, tia Aloyde está ali, pertinho de mim, querendo saber detalhes da minha última viagem.
Assim, fui aprendendo, com ajuda da inestimável psicanálise, a elaborar cada luto de um jeito só meu, que não se encaixa em nenhuma religião ou manual de autoajuda.
Os meus mortos também me ensinaram a encarar a vida com mais leveza, a não deixar pra depois para exprimir o meu amor e a não perder muito tempo com bobagens. Afinal, a qualquer momento, a gente pode sair de cena.
Nem sempre é fácil, nem sempre eu consigo. Mas as lembranças deixadas por cada um funcionam muitas vezes como minhas bússolas, meus guias. Feliz dia, meus mortos queridos.