Folha de S. Paulo


Esquizofrenia e seus estigmas

Daniel Coutinho, 42, é um esquizofrênico que numa crise psicótica matou a golpes de faca o pai, o cineasta Eduardo Coutinho, e feriu gravemente a mãe, Maria das Dores, 62. Depois tentou se matar.

Por quase 24 horas, essa versão foi reproduzida por toda a mídia a partir de declarações de um delegado do Rio. Ontem à tarde, a palavra esquizofrenia sumiu do noticiário.

O psicólogo Gilvan Ferreira, responsável por colher o depoimento de Daniel no hospital, disse que era prematuro falar em esquizofrenia ou problema com drogas, outra hipótese da polícia.

Mas aí o estrago já estava feito. Na fila do banco, na padaria, no ponto de ônibus, o assunto era um só: o filho esquizofrênico que matou o pai, o filho louco que deveria estar num hospício.

Talvez Daniel seja mesmo esquizofrênico, talvez tenha outro transtorno psiquiátrico. Isso só a família poderá dizer e os especialistas poderão confirmar. Não cabe a mim ou a ninguém mais especular.

Mas, até para não aumentar ainda mais o estigma que os esquizofrênicos já sofrem cotidianamente, é um bom momento para falar sobre a doença.

Para começo de conversa, há uma unanimidade entre os psiquiatras de que, desde que bem medicados e acompanhados, esses pacientes não representam perigo algum. Fiz abaixo uma síntese sobre alguns aspectos da esquizofrenia:

1 - Diagnóstico
É estritamente clínico. Não há exames que a confirmem, mas são importantes para descartar outros quadros psiquiátricos.

2 - Sintomas
Delírios, vozes e visões de seres imaginários. É comum também que a pessoa passe por períodos de apatia e desordem de pensamento, com alterações de juízo, falsas ideias de perseguição e dificuldade em se relacionar.

3 - Atividade cerebral
A dopamina, neurotransmissor associado às sensações de prazer e de recompensa, está no centro da esquizofrenia. Nas pessoas saudáveis, ela é liberada em quantidades equivalentes para os lobos frontal e temporal, sendo que o primeiro é responsável pela elaboração do pensamento, e o segundo, pela percepção e pela memória.

O cérebro da pessoa com esquizofrenia funciona como se houvesse menos dopamina no lobo frontal e mais no lobo temporal. Essa falta causa apatia e lentidão de pensamento. Já o excesso de dopamina na região temporal provoca delírios e alucinações.

4 - Predisposição genética
A esquizofrenia é um transtorno que se inicia quando o bebê ainda está sendo formado dentro do útero. Apesar de precoce, a doença só é identificada na adolescência ou na fase adulta, pois é preciso que o cérebro amadureça para que os sintomas se manifestem. Em geral, ela aparece nos homens entre os 15 e 20 anos e nas mulheres entre os 20 e 25 anos.

Apesar da existência de características hereditárias genéticas que colaboram para a doença, elas não são determinantes. Para os que não têm parentes esquizofrênicos, o risco de ser portador da doença é de 1%.

5 - Uso de drogas
Estudos genéticos recentes levantam a hipótese de que o uso crônico da maconha possa colaborar para o desenvolvimento da doença, dependendo do tipo de polimorfismo genético que o usuário possui.

6 - Medidas
O paciente esquizofrênico precisa de ajuda médica, psicológica e medicamentosa o mais rápido possível. Isso não é fácil, especialmente se depender dos serviços públicos. Mas mesmo as famílias que podem pagar pelo tratamento demoram para reconhecer a doença. Os sintomas podem ser muito sutis e normalmente a ajuda só é buscada na primeira crise.

7 - Tratamento
É multidisciplinar. Envolve medicamentos antipsicóticos, tratamentos psiquiátrico e psicológico, entre outros.

8 - Surtos esquizofrênicos
Podem acontecer uma ou diversas vezes na vida do paciente. As crises podem acontecer diante de conflitos ou situações de sofrimento. Em 85% dos casos, são recorrentes. Um surto não tratado pode durar mais de um ano, enquanto aqueles que têm o acompanhamento adequado duram apenas dias. Somente casos em que os pacientes respondem mal aos medicamentos podem durar mais. Quanto mais longos e frequentes forem os surtos, mais prejuízos trazem ao paciente. O tratamento é a longo prazo e deve ser mantido mesmo fora dos momentos de crise. Dessa forma, com diagnóstico e tratamento adequados, os desencadeamentos podem, inclusive, ser evitados.

9 - Internação
Há tanto restrições legais quanto ao tempo e às condições em que ela pode ocorrer quanto a falta de leitos psiquiátricos para abrigar esses pacientes em situações de crise.

Mais do que rotular essa ou outra doença psiquiátrica, está mais do que na hora de o país ter de fato uma política nacional em saúde mental. Não tem um dia sequer que eu não cruze nas ruas de São Paulo com pacientes claramente surtados, falando sozinhos, xingando, ameaçando.

Eu mesma já fui vítima de um deles anos atrás. Ele simplesmente acendeu um fósforo e jogou em direção ao meu cabelo. Ainda bem que quando o palito caiu na cabeleira, a chama já havia se apagado...


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