Folha de S. Paulo


É possível redistribuir agora?

Folhapress
O economista Celso Furtado em 1968
O economista Celso Furtado em 1968

Em artigo de 12 de outubro no jornal "O Estado de S. Paulo", o economista Marcelo de Paiva Abreu reclamou de minha coluna de 26 de setembro, em que sugiro que, diante da crise atual, combinemos ajuste fiscal e redistribuição de renda, como tentou fazer o Plano Trienal de Celso Furtado.

Paiva Abreu argumenta que o elemento redistributivo no Plano Trienal era secundário, e que, na verdade, Celso Furtado havia demonstrado patriotismo ao priorizar o ajuste fiscal ao invés da agenda estruturalista pela qual ficou conhecido. Conclui que, se for o caso de tirarmos uma lição do episódio, deveríamos decidir pela prioridade do ajuste fiscal.

Com todo respeito à obra acadêmica de Paiva Abreu, é preciso reconhecer que há muito espaço para melhora nesse raciocínio. Se as propostas redistributivas do Plano Trienal eram irrelevantes, o Plano Trienal era exclusivamente fiscalista. O Plano Trienal fracassou. Disso concluímos que devemos ser exclusivamente fiscalistas? Paiva Abreu parece sugerir que é preciso escolher entre reequilibrar as contas do governo e redistribuir renda. Em termos estritamente econômicos, isso é falso. Só seria verdadeiro se a única forma de redistribuir renda fosse pelo gasto (gastando mais e mais com os pobres, como foi feito durante o lulismo).

Mas também é possível redistribuir renda taxando as rendas altas. O Brasil, na comparação internacional, taxa pouco as heranças; e não taxa os dividendos. Não há raciocínio possível em que aumentar esses impostos piore a situação fiscal do governo.

Nada disso é particularmente bolivariano. O economista Edmar Bacha, em entrevista ao jornal "Valor Econômico" de 14 de janeiro de 2015, disse que "um dos grandes escândalos do imposto de renda no Brasil são as inúmeras maneiras pelas quais as pessoas mais ricas conseguem escapar da taxação de 27,5% através dos mais diversos meios legais". A progressividade tributária estava no estatuto de fundação da Arena, partido que sustentava o regime militar.

No lançamento do primeiro volume dos "Diários da Presidência", lembrei este fato a Fernando Henrique Cardoso, que respondeu: "isso poderia estar no programa de todos os partidos, e não fazem; ou fazem pouco; porque há resistências objetivas a fazer".

A reivindicação de justiça tributária não é, sequer, contraditória com a adoção da PEC 241.

É perfeitamente possível, inclusive, que novos impostos sobre os ricos ajudem (um pouco) a recompor as finanças do governo, facilitando a revisão do teto no prazo de dez anos (ou até antes).

Aliás, defensores da PEC 241 têm enfatizado que o congelamento de gastos pode ter um efeito progressista: ele tornará as disputas dentro do orçamento mais transparentes e disciplinadas. Pode ser verdade.

Mas eu teria muito mais fé na possibilidade disso resultar em algo a favor do andar de baixo se o debate sobre taxar o andar de cima não estivesse interditado. Isso sugere fortemente que a distribuição de poder não anda particularmente pró-pobre.

Enfim, sugiro um bolão: o que virá primeiro, o momento do ciclo econômico em que a esquerda dirá que é hora de cortar gastos ou o momento em que a direita considerará adequado para redistribuir renda?


Endereço da página:

Links no texto: