Folha de S. Paulo


Na defesa de acusados de corrupção, Gilmar Mendes está na vanguarda

O impeachment de 2016 não foi um golpe. Foi uma dessas coisas de república de bananas que fazemos de vez em quando.

Cinco anos de mandato para Sarney, por exemplo, ou a reeleição de FHC valendo já para ele mesmo. É o tipo de coisa que faz as pessoas acreditarem no Ryan Lochte a não ser que apareça um vídeo.

Com o encerramento do processo no Senado, editoriais sobre recomeço e uma nova fase serão vendidos às dúzias.

Há chance real de melhora econômica, até porque o impasse, em si, gerava incerteza. E a equipe econômica é mesmo boa. Mas as perspectivas políticas são ainda piores do que quando a crise começou.

O mesmo processo que derrubou o PT continua em curso: a classe política quer se recompor após o choque da Lava Jato.

Tentou fazer isso com o PT no governo, com cumplicidade de muitos petistas, mas não foi possível. Sobre isso, deixo como indicação bibliográfica "Não Sabia que Estavam Gravando", obra-prima de Romero Jucá publicada em 2016.

Tentarão agora de novo sob Temer, com mais chance de sucesso.

O sinal dos novos tempos foi dado por Gilmar Mendes, ministro do Supremo e foto do mês de janeiro no calendário dos conservadores brasileiros.

Às vésperas do impeachment, Gilmar iniciou uma ofensiva contra os esforços recentes de combate à corrupção no Brasil.

Disse que a Ficha Limpa era coisa de bêbados, que as "Dez medidas contra a corrupção" em discussão no Congresso eram "cretinas".

Quando denúncias, algo forçadas, contra Dias Toffoli vazaram, achou por bem lembrar aos procuradores da Lava Jato que "o cemitério está cheio desses heróis".

Enquanto isso, transcorre uma batalha muito mais importante do que o teatro melancólico no Senado. A jornalista Maria Cristina Fernandes denunciou que congressistas pretendem reforçar a distinção legal entre caixa 2 e corrupção.

São mesmo duas coisas diferentes, mas, no contexto atual, o plano é claro: os empreiteiros delatores confessariam apenas caixa dois, sem deixar claro que roubalheiras os políticos ofereceram em troca do dinheiro.

Assim, as centenas de políticos envolvidos seriam denunciados por crimes menores. Se houver uma flexibilização da Ficha Limpa, nem isso será um transtorno.

Enquanto os procuradores lutavam para evitar esse desfecho, Gilmar achou por bem relembrar-lhes da inevitabilidade da morte.

No dia seguinte à entrevista, Gilmar compareceu a um evento oficial com Michel Temer.

Pouco depois, Rodrigo Maia, recém-eleito presidente da Câmara, declarou que as críticas do ministro à Lava Jato deviam ser "ouvidas com muita atenção". Como disse Gilmar, "o recado está dado".

Gilmar é ousado porque sabe que joga com cartas boas. Ocupa a presidência do TSE, e sua ocupação no momento é inventar algum malabarismo que justifique julgar as contas de Dilma e de Temer separadamente.

Se não conseguir, Temer será cassado. Muita gente inteligente teme que isso ameace a recuperação econômica, ao menos no momento atual. Gilmar não chega a ser intocável, mas criticá-lo traz, sim, um certo risco sistêmico.

Com a economia como refém, Gilmar saiu em defesa dos políticos acusados de corrupção. Acostumem-se com o padrão, vamos assim até 2018: semanalmente escolhendo entre a recuperação econômica e o combate à corrupção. Gilmar foi só a vanguarda.


Endereço da página: