Folha de S. Paulo


Dodô Mãozinha

Donald Trump quer construir um muro separando os Estados Unidos da América Latina. Evidentemente, teme que nós, latino-americanos, o reconheçamos e alertemos os eleitores americanos sobre ele. Pois todos nós o conhecemos: ele é o típico picareta sem-vergonha que periodicamente aparece na política latino-americana para quebrar um país.

Não há nada em Trump que não seja familiar para os habitantes do sul. Caudilho demagogo sem a menor ideia do que está fazendo? Chávez. Sujeito metido a líder empresarial que vale muito menos do que diz que vale? Eike Batista. Fascista de terceira divisão contrabandeando testosterona subprime? Jair Bolsonaro. Trump é isso, uma mistura de Chávez, Eike e Bolsonaro.

O sistema político norte-americano ainda parece estranhar Trump, que os remete a tradições políticas que os EUA já pensavam ter deixado para trás. Mas é facílimo imaginá-lo com o mesmo penteado disfarça-careca se elegendo vereador no Rio de Janeiro com um apelido como, digamos, Dodô Mãozinha.

Como foi possível que este filho de Enéas com Quércia tenha chegado tão perto de controlar o maior exército da história?

Muitos analistas enfatizam o modo como Trump soube falar aos norte-americanos que ficaram para trás na globalização, gente para quem o discurso "os chineses roubaram seu emprego" parece fazer sentido.

Sob esse aspecto, Trump faz parte de uma mesma onda conservadora e anti-internacionalista que incluiria, entre outros, o movimento pelo Brexit na Inglaterra.

É notável, por exemplo, que Trump, que não se notabiliza pela consistência, tenha, ao longo da vida, mantido ao menos uma obsessão: a de que os Estados Unidos estão sendo passados para trás pelos estrangeiros.

Nos anos 80, reclamava do risco de dominação japonesa. Já nessa época o Japão começava a dar sinais de que não continuaria a crescer no mesmo ritmo. Agora protesta contra a China, no momento em que ela também dá sinais de que sua economia precisa de ajustes. Nos dois casos, Japão dos anos 80 e China atual, parte do problema eram bolhas imobiliárias. Como notou Daniel Drezner, professor da Fletcher School of Law and Diplomacy, para um sujeito que fez a vida no mercado de imóveis, Trump parece ser particularmente ruim em identificar bolhas imobiliárias.

Embora a crise de 2008 não tenha gerado a alternativa de esquerda com que muitos sonhavam, parece ter abalado a legitimidade da visão otimista sobre a globalização que imperou nos anos 90. Lendo os textos da época, é impossível não se impressionar com o excesso de expectativas que tínhamos com a abertura comercial e a integração mundial. Havia um certo otimismo Clintoniano no ar, e a integração chinesa na economia mundial causou uma das maiores reduções de pobreza da história.

Mas a ideia de que a integração global melhoraria a vida de todo mundo se mostrou errada: a mesma globalização que cria ilhas de prosperidade em países pobres também cria ilhas de estagnação em países ricos, e isso está começando a afetar a vida política do mundo desenvolvido.

Trump rejeita os latino-americanos que aspiram viver em uma sociedade de primeiro mundo enquanto promete aos americanos uma política avacalhada como a da América Latina. Com a diferença que nossos caudilhos raramente têm os recursos para desorganizar sociedades que não as próprias.


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