Folha de S. Paulo


Debate capital no século 21

A visita de Thomas Piketty ao Brasil na semana passada causou grande rebuliço, tanto na comunidade acadêmica quanto fora dela. O autor de "O Capital no Século 21", um dos livros mais comentados do ano, visitou faculdades e expôs ao público algumas das principais ideias contidas na obra.

O status de celebridade atribuído ao economista está bastante ligado às ideias que defende. Piketty soube alvoroçar curiosos e estudiosos, ainda que as conclusões da obra tragam pouca originalidade ao debate econômico.

Em suma, o livro sustenta a ideia de que a concentração de renda tem sido exacerbada nas últimas décadas, e que uma solução viável para o problema seria aumentar os impostos sobre grandes fortunas. Por exemplo: se você recebeu R$1 milhão em herança de família, deveria pagar mais Imposto de Renda do que alguém que acumulou esse mesmo montante ao longo de alguns anos de trabalho.

Segundo ele, em uma sociedade cada vez mais baseada em patrimônio, ainda que todos os indivíduos pudessem ter acesso a uma educação de qualidade e, dessa forma, obter trabalhos dignos que oferecessem boas remunerações, a concentração de renda continuaria a ser um problema.

O que ele sustenta é que hoje a disparidade de renda está relacionada aos ganhos vultuosos obtidos no mercado financeiro por meio de instrumentos como derivativos e investimentos em private equity.

Como em grandes corporações os executivos possuem incentivos para investir cada vez mais nesses tipos de produtos arriscados, Piketty argumenta, a concentração de renda estaria relacionada, portanto, a problemas de governança dentro das empresas, uma vez que esses gestores são movidos por bônus astronômicos, baseados nos ganhos obtidos exatamente nessas operações.

Apesar de o argumento fazer bater mais rápido o coração de alguns, há muitos pontos em aberto em sua teoria que merecem uma discussão mais profunda.

A primeira questão é métrica. Em seu livro, ao comparar bem-estar privado com renda nacional por meio de uma razão, o autor utiliza uma medida de estoque e outra medida de fluxo.

O segundo ponto refere-se à perspectiva: ao dizer que quem recebe herança deve ser mais tributado, estamos pensando na economia como uma fotografia em um único instante do tempo, e não como um processo histórico.

Ao sustentar cargas muito elevadas para grandes fortunas, o que se pode estar sugerindo é, na verdade, um desincentivo à poupança. Ou seja, quanto mais prudente e mais poupador o indivíduo, pior para ele e sua família, pois precisará pagar mais impostos. Além disso, pode-se alimentar um problema ainda mais grave, que é a fuga de patrimônio construído dentro do próprio território. A França nos oferece inúmeros casos famosos desse último problema.

O terceiro é mais filosófico (ou talvez nem tanto assim): ao supor que a tributação para os setores mais ricos da sociedade deva ser maior, supõe-se que essa transferência das mãos do empresário para o Estado irá fazer com que os recursos sejam geridos de forma mais eficiente pelo setor público. Na prática, sobretudo em países com altos níveis de corrupção, o que acontece é diferente.

Além disso, ao dizer que o capital privado é o motor da concentração de renda, esquece-se que boa parte dessa distorção é gerada pelo setor público. O excesso de tributos indiretos, caso clássico do Brasil e seus PIS, Cofins e ICMS, faz com que quem tem menos renda pague mais, em termos percentuais, do que quem ganha mais. Demonizar as empresas, muitas vezes, significa pensar nelas como instituições que vivem isoladas no mundo, esquecendo-se de seu papel gerador de oportunidades de emprego, por exemplo.

Assim, a lógica empregada por Piketty acaba por ajudar a minar o empreendedorismo e as possibilidades de inovação e progresso dentro dos países, uma vez que desestimula a poupança dos que desejam trazer ao mercado ideias mais eficientes que podem gerar altos lucros.

Além desses debates mais centrados em questões metodológicas relacionadas ao raciocínio empregado pela obra, há também questões básicas de gerenciamento de empresas que podem nos ajudar a entender como mecanismos de tributação mais pesados podem gerar incentivos perversos.

No ambiente da empresa, o pagamento dos impostos é feito após o pagamento de juros sobre a dívida. Dessa forma, o endividamento oferece um benefício fiscal, uma vez que o pagamento de juros diminui o montante sobre o qual incindirá a tributação.

Dessa forma, ao aumentar a tributação, pode-se criar um incentivo exatamente contrário ao desejado por Piketty, ou seja, uma alavancagem cada vez maior das empresas, uma vez que essas buscarão maximizar o benefício fiscal oferecido pela dívida, para evitar o pagamento excessivo de impostos.

Além disso, ao aumentar a alíquota a ser paga pelas pessoas físicas mais ricas, cria-se um outro incentivo perverso: a empresa diminui o montante a ser distribuído ao acionista, o que pode levar a um aumento de caixa disponível.

Esse fato é um dos principais e mais conhecidos problemas em finanças corporativas, pois deixar "dinheiro na mesa" faz com que os gestores invistam em projetos cada vez mais ineficientes. Diante disso, considerando que a empresa faz parte do ambiente de negócios do país, quanto mais ineficientes forem seus investimentos, piores serão as condições geradas no médio e longo prazo para a criação e manutenção de postos de trabalho.

Apesar de deixar questões como essas em aberto, a obra de Piketty carrega bastante significado, pois, como ele mesmo disse, o alvoroço gerado, especialmente na comunidade não acadêmica, demonstra o interesse das pessoas em compreender temas econômicos, o que, por si só, demonstra avanço intelectual, além de engrandecer a controversa profissão de economista.

Post em parceria com Mariana Calabrez, que é economista formada pela FGV-SP e atualmente pesquisa sobre finanças corporativas e comportamentais.


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