Folha de S. Paulo


Cinzas e nada mais

Amanhã é Quarta-Feira de Cinzas. Para os católicos, uma data importante, é dia de meditação e preces no qual se pede perdão pelos pecados cometidos durante o Carnaval. Nas igrejas os sacerdotes levam um pouco de cinza e com ela fazem uma cruz na testa dos devotos. É uma advertência de que, apesar de nossas alegrias profanas e folias pecaminosas, todos terminaremos em cinza, "memento homo quia pulvis est et in pulvis reverteris" (lembra-te, homem, que és pó e ao pó tornarás).

Padre Arnaldo era nosso professor de grego. Autor da gramática adotada no seminário. Um pouco extravagante, cochilava durante as aulas e cultivava fúrias apocalípticas.

Nas Quartas-Feiras de Cinzas entregava-se a uma cólera assombrosa. Não morava conosco, mas no Méier. Precisava tomar dois bondes para chegar ao Rio Comprido, onde o cardeal Leme fundara o Seminário de São
José, no qual passei os dez anos mais importantes de uma vida desimportante.

Os seminaristas daquele tempo gostavam de dar apelidos aos professores. Um deles, que ensinava geografia, tinha o apelido de "Coordenada Terrestre". Padre Arnaldo era o "Homero do Méier". De temperamento sanguíneo, no dia dedicado ao arrependimento pelos pecados cometidos, entrava nos bondes e em todos os lugares que frequentava com voz exaltada e gritava: "Cinzas e nada mais!". Este era o seu apelido que se revezava com o "Homero do Méier".

Quando entrava na sala onde daria aula, com a mesma fúria cumprimentava os alunos com a sua advertência: "Cinzas e nada mais", só que em grego.

Meus amigos de hoje pensam que eu sou um helenista, fluente em grego e capaz de recitar um poema de Píndaro ou trechos de "O Banquete" de Platão. Na realidade, em grego só sei dizer: "Cinzas e nada mais".


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