Folha de S. Paulo


Devoções

RIO DE JANEIRO - Foi no Finados. Não éramos dados a devoções. O padrasto herdara uma veneração pelas almas. Todas as segundas-feiras, acendia três velas, enchia três copos de água e colocava tais apetrechos no banheiro da empregada, fechando a porta por cautela.

Os copos d'água e as velas eram "para as almas". Essa a explicação que dava, mesmo sem ninguém pedi-la. Posteriormente, aumentou o número de velas, pois minha mãe julgava-se na obrigação de cultuar não sei que espíritos.

Quando Marcelino empossou-se na gerência espiritual da casa, não só aprovou a devoção como a recomendou como eficaz para preparar as almas que deveriam receber a iluminação do próximo milênio.

Explicou: a luz servia para iluminar as trevas do outro mundo; a água ajudava a próxima materialização, pois o corpo humano é, sobretudo, água; citou Tales que considerava a umidade como germe da vida vegetal e animal.

O padrasto admirou-se. Pensava que a água era para os espíritos beberem caso sentissem sede, provocada pelas chamas do inferno ou do purgatório. Ficava admirado de no dia seguinte encontrar os copos intactos.

Marcelino invectivou com verbo rude a crença nas chamas, no purgatório, no inferno, no céu. Chamou de padraradas o além-túmulo dele.

– Mas Caldas, o Dante...

– Qual Dante, que nada! Isso é invenção da padrarada. A "Divina Comédia" foi escrita pelos padres, o grande florentino não acreditava nessas coisas, era um iluminado, lá na rua da Quitanda um engenheiro já recebeu o espírito de Dante, tem pavor da padrarada. A "Divina Comédia" foi escrita por monges, em Milão...

O padrasto conhecia dois italianos ilustres, Dante e o papa:

– Em Milão ou em Florença o fato é que Dante...

– Qual Milão? Milão nunca deu nada que prestasse, nem mesmo a farinha de rosca para os bifes à milanesa.


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