Folha de S. Paulo


Não passa desta noite

RIO DE JANEIRO - Não gosto de coincidências, mas elas existem. Eu tinha dois amigos internados no mesmo hospital e decidi visitá-los no mesmo dia e horário. O primeiro –médico famoso, capaz de levantar qualquer defunto– já estava sentado em uma poltrona ao lado do leito. Conversamos. Ele teria alta no dia seguinte.

Para abreviar a visita, disse-lhe que precisava ver o outro amigo, que, por sinal, também era amigo dele. Estava internado no mesmo andar. Ao saber disso, o médico quis ir junto. Penteou os cabelos, de pijama e chinelos, me acompanhou ao quarto do amigo comum.

Que ficou maravilhado ao nos receber. Comunicou-nos que estava em recuperação, esperava receber alta na semana seguinte e nos mostrou o local onde fora operado, após uma sessão de radioterapia mal administrada que queimara parte de seu intestino e o colocara em risco de morte. Chegara a receber a extrema unção.

Como médico, o meu amigo quis ler o boletim dentro de um plástico, com anotações dos clínicos e enfermeiros que estavam cuidando do paciente. Temperatura, pressão, medicamentos, radiografias, exames de sangue, tudo estava detalhado.

O paciente esperou com ansiedade a opinião do amigo que devia entender da situação mais do que ele. Ficou aliviado. Como médico e não como amigo, declarou que tudo estava ótimo. Elogiou-lhe o estado de saúde, quase um jovem, com a idade que tinha, melhor não podia estar, agradecesse a Deus.

Saímos juntos, deixando o amigo maravilhado com a opinião do médico e amigo. Fechamos a porta do quarto. Já no corredor, falando no tom mais baixo que ele podia, com a cara sinistra que só os médicos têm na hora do diagnóstico fatal, ele me disse: "Não passa desta noite!".


Endereço da página: