Folha de S. Paulo


O equívoco

RIO DE JANEIRO - Em meio à correspondência recebida, geralmente impessoal e interesseira, pedindo divulgação para determinada pessoa, obra ou espetáculo, sugestões de pauta, sempre surgem cartas que procuram um diálogo pessoal com o cronista.

A maioria é de reclamação contra isso ou aquilo, e, vez por outra, a reclamação sobe de tom e baixa de nível. Já recebi cumprimentos por ter escrito "Toda Nudez Será Castigada" –obra que figura entre as melhores que não escrevi. Semana passada, chegou uma carta de Santa Catarina.

Disponho de uma secretária que faz a triagem da maior parte das cartas e as encaminha ao lixo ou à resposta formal e meramente educada. Mas sempre aparecem algumas que trazem um problema especial –e essas costumam chegar à mísera pessoa do escriba.

Eu estava desprevenido, ou melhor, desabituado a receber cartas assim. A leitora não faz referência a nenhuma crônica específica, a nenhum dos livros que por aí publiquei. O comentário dela é genérico, começa com um tipo de agradecimento que me arrepiou: "Você é o maior!"

Nunca pensei nisso. Nem em meus momentos mais exaltados, chego a esse delírio. A leitora ainda comenta a insistência com que escrevo: "O senhor escreve como quem vive, sei que não vive para escrever, pelo contrário, escreve para viver".

Cretinice à parte, não faz exatamente o meu gênero. Contudo sinto-me obrigado a confessar o nó que tudo isso me deu aqui dentro. O primeiro impulso foi acreditar: "Custou, mas pelo menos surgiu alguém que reconhece o meu valor".

Cheiro a carta com vigor. Nenhum vestígio nem de incenso nem de enxofre. Deus e o diabo não querem nada comigo. Menos o José Simão, para quem a carta foi dirigida.


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