Folha de S. Paulo


Igreja e Estado

Não é de hoje que a Igreja e o Estado, no Brasil e em outras partes do mundo, entram em choque mais ou menos ostensivo. Tivemos, no passado, alguns heróis de batina que se colocaram contra os interesses ocasionais do Estado.

Cito de memória, Frei Caneca --um dos maiores vultos de nossa história, cujo legado infelizmente é pouco lembrado--, os padres que participaram da Inconfidência Mineira, o grande Antonio Vieira, que comprou briga feia com a Inquisição, vale dizer, com o Poder Temporal e Espiritual de seu tempo. As causas variavam mas havia uma constante: esses padres assumiam individualmente todos os riscos de suas ideias e atitudes.

Quando a polícia vinha cobrar o que era dela (ou pensava ser dela) eles não entravam em choradeira, nem se consideravam mártires (e na verdade, todos eles foram). Ao ser fuzilado, Frei Caneca não apelou para a grossura: era ele, Frei Divino do Amor Caneca (cito o nome de memória, meus infames conhecimentos de historia não me ajudam em horas tais).

O mesmo aconteceu com Vieira, que gramou muitos anos nas celas da Inquisição, com risco de ir a qualquer hora para a Santa Fogueira da Verdade Oficial. Em nenhum momento Vieira perdeu a lucidez de que estava sendo perseguido por suas ideias e ideais, a Igreja (ou a sua ordem) nada tinham com isso.

Atribui-se ao general Góis Monteiro, que foi o condestável da ditadura de Getúlio Vargas, o péssimo costume de se tomar pela totalidade do Exército quando era atacado pela imprensa ou pelos políticos. É aquela velha frase: "Não é a mim que atingem, se o fosse, até que eu não daria bola, mas é um general do Exército que está sendo enlameado, etc, etc".

Essa lenga-lenga que tanto serviu ao finado general, serve hoje a alguns padres que tomam suas atitudes muitas vezes em caráter individual, personalista, mas na hora de sofrer as consequências botam a boca no trombone e apelam para a CNBB, a Igreja Universal, a Comunhão dos Santos, todas as cortes celestiais, anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos e potestades.

Trocando em miúdos: a situação fica falsa para ambos os lados. Os padres mais ousados, que sofrem no dia a dia de suas pastorais os problemas mais dramáticos da gente pobre do povo de Deus, resolvem brigar contra a polícia do delegado ou a tropa do tenente estadual ou federal. Tudo muito bem.

Mas na hora de levar o tiro (ou diante da ameaça de um tiro) ele abre a boca e diz que a Igreja de Deus está sendo ultrajada, é o novo Coliseu de Sangue dos Inocentes, Jesus Cristo novamente levado ao Calvário. Talvez o seja, em determinados casos.

Afinal, enquanto houver injustiça e pecado (que é o nome cristão do mal) haverá sempre o martírio de uma ovelha no sacrifício propiciatório --desde que mundo é mundo é sempre necessário que morra um para que se salve o povo. Mas esse que vai morrer, esse que comprou a briga às vezes levado por uma paixão romântica e momentânea, esse deve ficar com os riscos gerais da situação.

Em linhas gerais, o que está dito para a Igreja serve para o Estado. Os bolsões radicais existentes em um e noutro organismos devem assumir rasgadamente a responsabilidade de suas posições. Isso não resolve o problema mas (como se diz em Portugal) clarifica as coisas. E de confusão acho que chega.

Aliás, aconselho a leitura de Padre Vieira: ele ensina cada vez mais a um tipo de homem que cada vez sabe menos.


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