Folha de S. Paulo


A virtude dos medíocres

Passei um fim de semana sem ler jornais e revistas. Afinal, o mundo é mundo há milhões de anos e não deixa de ser um saco ficarmos reféns do noticiário sobre o dólar, os ciclistas atropelados e o mensalão. Entre tantos e tão diversificados assuntos, há outras coisas que a nossa vã prosápia ignora.

Retomo antigo projeto pessoal: reler Marx, sem pressa nem fé, tal como leio a Bíblia e os editoriais da nossa imprensa, bicando aqui e ali, discordando mais do que concordando. Escritor difícil, impenetrável em muitos textos, Marx resvala com frequência para frases de efeito --são essas, exatamente, as vigas daquilo que se denominou Marxismo, ou seja, uma coisa alienígena, como o cristianismo, a penicilina, o uísque, o iPod, o futebol e o FMI.

Pinço da leitura a obviedade de que cada classe dominante promove as virtudes que interessam à dominação. Marx cita dois exemplos: a aristocracia, que enalteceu a fidelidade, a lealdade e a obediência; e a burguesia, que enaltece a liberdade, o direito às oportunidades, a concorrência, o esforço individual. Marx parou por aí. Não avançou no tempo, fornecendo o exemplo seguinte, que dentro de sua concepção da história, seria o Estado proletário.

Como classe dominante, quais as virtudes que os operários promoveriam? Fica difícil falar por Marx, mas é evidente que, em seus numerosos escritos, ele responde a essa questão diversas vezes. A grande virtude da nova classe seria a solidariedade, prima pobre, porém honrada, da fraternidade cristã.

Não foi à toa que, na Polônia, o sindicato de Lech Walesa, que lutou contra a ditadura do partido único, adotou esse nome (Solidariedade) e procurou implantar essa virtude.

O que Marx não explicitou --e os marxistas nem sequer admitem-- é a analogia da virtude proletária com a virtude da aristocracia. A solidariedade também enaltece a fidelidade, a obediência, a lealdade. Condena a liberdade individual, elevando-a à categoria de "bête noir" da história. Vai nisso, talvez, o ódio que o Estado proletário dedica ao Estado burguês que o antecede no processo social.

Pulando de Marx para a experiência pessoal, lembro que em 1964 escrevi uma crônica contra a solidariedade, considerando-a a virtude dos medíocres. Naquele tempo, as chamadas forças vivas da nacionalidade estavam solidárias com as medidas punitivas do movimento militar daquele ano. Embirro com a solidariedade. Exemplo: como qualquer outro mortal, também tive mãe. No dia em que ela morreu, impliquei com um amigo que murmurou no meu ouvido: "vim trazer a minha solidariedade!"

Quem já perdeu a mãe sabe o quanto é pessoal e intransferível esse tipo de dor. Uma dor insolidarizável em sua verdade, em seu gosto, em seu pranto. Agora, uma coisa é a gente perder a mãe. Outra, perder a vergonha na cara. Em ambos os casos, a solidariedade é ociosa.

Vi a cara de dona Dilma na missa em Petrópolis, solidarizando-se com as vítimas mortas e vivas. Nos poucos enterros, velórios e missas de sétimo dia que frequento, fico pasmo diante das caras de dor, fisionomias pungentes. Não consigo compor uma cara condizente, daí que muita gente estranha minha insensibilidade. Ao contrário do meu pai, cuja especialidade e maior característica era exibir, nos funerais de qualquer um, a cara devastada de dor. Era mestre nesse mister.

Muitos o confundiam com um parente do falecido, ele recebia pêsames com a cara contrita que só ele sabia fazer. Depois, para compensar, procurava uma carrocinha que vendia o angu do Gomes, dizia que as cerimônias fúnebres abriam-lhe o apetite e o orgulho de continuar vivo.


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