Folha de S. Paulo


Bobo da corte

Com atraso, e ainda exausto pela façanha de ter ganhado o Nobel, o lusitano José Saramago fez um desabafo sobre a desimportância do artista na sociedade humana. Classificou-o como bobo da corte, a cereja cenográfica em cima do bolo.

Tudo bem se não fosse uma descoberta tardia. Bem antes dele, Jean-Paul Sartre dizia que "a arte é uma generosidade inútil". E um escritor brasileiro caiu em desgraça, quando, numa conferência no "Jornal do Commercio" do Rio, definiu a literatura como "o sorriso da sociedade". Nunca foi perdoado por isso.

Não li o desabafo de Saramago, tomei conhecimento dele em segunda mão, de maneira que ignoro se ele chegou a essas descobertas nos últimos tempos e em função dos tempos últimos. Pois a verdade é que sempre foi assim. O artista é sempre o Rigoletto que diverte o rei ("Le Roi s'Amuse"), tal como aparece no romance de Victor Hugo e na ópera de Verdi.

Casanova trabalhava como bibliotecário de um ricaço, comia com os demais empregados --na cozinha. Na cozinha do arcebispo-príncipe de Salzburgo também comia Mozart --e, quando levou o famoso pontapé no traseiro, o problema de comida ficou dramático para ele. "Così fan tutte".

Outro que comia na cozinha --a soberba cozinha de um papa-- era Michelangelo. O outro gênio da Renascença que hoje dá nome ao aeroporto de Roma, Leonardo da Vinci, andou de corte em corte em busca de comida, pagando-a com quadros que hoje estão no Louvre. Já no final da vida, indisposto com os Sforza de Milão, agarrou-se a Francisco 1º e morreu num cubículo, pobre, infeliz e esquecido. Nem sabia que mais tarde viraria um código.

James Joyce lutou com a falta de dinheiro a vida toda. Os príncipes da Renascença já não existiam, ele passou a vida dando aulas em Trieste, trabalhando como funcionário subalterno numa companhia de seguros.

Durante os anos mais deslumbrantes do Império Romano, os artistas, professores e escritores eram cooptados pelo palácio, funcionavam como ancestrais do "Rigoletto" de Hugo e Verdi. E, quando não conseguiam distrair o imperador ou enchiam de tédio a corte, eram obrigados a beber veneno ou a lutar com os leões no Coliseu. Evidente que os leões sempre saíam vencendo.

Um filme antigo de Ettore Scola ("A Viagem do Capitão Tornado"), baseado numa obra de Emilio Salgari, mostra um grupo de artistas mambembando de castelo em castelo, em busca de um prato de sopa e de um canto na cozinha, junto ao fogão, para não morrer de frio e fome.

É recente a valorização do artista na sociedade. Mesmo assim, não se trata de uma valorização de mérito, mas de conveniência. O mecenas, o imperador, a empresa multinacional, algumas vezes o próprio Estado são obrigados a pagar melhor os melhores, mas deixando bem claro que o artista deve se submeter ao gosto e ao interesse de quem o paga.

Conheci no Rio um pintor de muita popularidade, chamado Nilton Bravo. Como Michelangelo, pintava por metro quadrado. Oitenta por cento das padarias e botequins do Rio tinham seus enormes painéis. Nem mesmo assim era livre. O dono do botequim ou da padaria, geralmente um português ou um espanhol, dirigia o painel: "bote uma canoa ali naquele riacho"; "Bote um castelo e uma ema repousando numa perna só".

Um desses portugueses, desejando homenagear Portugal, Brasília, Rio e São Paulo, obrigou Nilton Bravo a uma extravagante perspectiva. Ele pintou um rio que ia se transformando em lago de Brasília, em rio Tietê, em baia de Guanabara e, finalmente, no rio Tejo. No espaço de uma parede, conseguiu colocar o Palácio da Alvorada, a torre de Belém, o Corcovado e o Edifício Banespa, tudo unido e reunido pelo fantástico rio que criou. A verdadeira arte é isso.


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