Folha de S. Paulo


Continuar a cobrar em 2010

Na última coluna do ano passado, listei 12 desejos para a Folha em 2009, com base no que considerei terem sido as reclamações de leitores mais constantes e pertinentes que recebi ao longo de 2008.

É impossível fazer um balanço minucioso e objetivo de quanto dessas aspirações do público se realizaram. Algumas simplesmente não foram atendidas, como a de que se torne obrigação de todo jornalista responder às mensagens de leitores que lhe chegam ou a de que fora do eixo São Paulo-Rio-Brasília se receba o mesmo jornal que o destas regiões, com todos os suplementos e cadernos especiais de interesse nacional que o compõem.

Outras não resultaram em nenhuma mudança expressiva, como a que argumentava contra o tratamento privilegiado a celebridades transformadas em semideuses: saíram Michael Phelps e Carla Bruni, mas entraram Ronaldo e Michael Jackson. Ou a que propugnava que o jornal não repita informações sobre grandes acontecimentos já cansativamente repetidas na véspera pelos meios eletrônicos.

Mas houve vários avanços em pelo menos metade dos pedidos feitos um ano atrás. Não vou atribuir esses progressos ao trabalho do ombudsman, ao contrário do cão que achou ter espantado o trem no haicai ao lado, de autoria do poeta mexicano José Juan Tablada (1871-1945), que me foi enviado pelo leitor André Fiorussi. Aliás, o haicai, cujas história e características muito se pode conhecer com o livro recomendado ao final (uma antologia de autores brasileiros que se dedicaram ao gênero), pode ser formidável instrumento de reflexão e autoconhecimento.

Esse tipo de poema é um precursor em muitos séculos do Twitter em termos de esforço de concisão. Só que, enquanto este é usado basicamente para disseminar fofoca, banalidade ou informação pessoal coletivizada graças ao ambiente contemporâneo de estímulo ao exibicionismo combinado com voyeurismo, aquele busca estimular a inteligência, em geral com bom humor.

Portanto, alertado pelo delírio do cão e para não cair em nenhum tipo de delusão, como os narrados no filme indicado no fim deste texto, admito que a evolução positiva constatada ao longo de 2009 nas edições deste jornal em relação aos pontos aqui levantados há 12 meses possa não ter nada a ver com eles.

O "Painel do Leitor" ganhou um alento em 2009, com a criação da seção "Semana do Leitor", em que personagens do noticiário e seus representantes não entram, e cartas mais longas são publicadas.
E a contagem semanal do espaço para leitor e noticiado no "Painel" registra pequeno aumento na proporção de leitores em relação ao ano passado (pouco mais de 1% a mais tanto em número de cartas quanto de centímetros, chegando a quase 88% delas e 81% deles em 2009).

O jornal não cometeu em 2009 nenhum erro na utilização de grampos divulgados por outro veículo de comunicação, como aconteceu em 2008 no caso da suposta gravação ilegal (nunca confirmada) de conversas do ministro Gilmar Mendes feita pela Abin.

O jornalismo preventivo, cuja priorização era incentivada pela coluna há um ano, foi mais praticado em 2009 do que havia sido em 2008. Em quase todos os meses deste ano há exemplos positivos a serem citados.
Não se fez um "DNA da educação" como aqui proposto. Mas pelo menos foi criada uma nova seção dedicada a temas educacionais, a página semanal Saber, embora o seu desempenho até agora seja considerado por quase todos os leitores que se manifestaram a mim sobre ela como decepcionante.

A tão ansiada edição digital se materializou e, apesar de algumas reclamações, foi bem recebida.

O tratamento de grandes cifras e valores também melhorou, conforme avaliação impressionista feita a partir do exame das críticas internas diárias, nas quais diminuiu o número de reclamações contra a falta de esforço da Redação para dimensionar esses números por meio de comparações que sejam compreensíveis para o leitor médio.

Quase não se viu neste ano interferência abusiva de anúncios no espaço editorial detectada em 2008, embora uma ou outra campanha tenha sido um pouco exagerada.

Os erros de português por coluna diminuíram cerca de 10% em 2009 na comparação com 2008 no período de janeiro a outubro, o mais recente com dados disponíveis.

O ombudsman pouco ou nada teve a ver com essas melhoras na qualidade do jornal. Mas os leitores, com suas cobranças diárias, certamente tiveram. Que eles continuem batalhando em defesa de seu direito de receber um produto de boa qualidade é o meu desejo para 2010.

PARA LER
"Boa Companhia: Haicai", de Rodolfo Witzig Guttilla (org.), Companhia das Letras, 2009 (a partir de R$ 23,40)

PARA VER
"O Gabinete do Doutor Caligari", de Robert Wiene, 1920 (a partir de R$ 47,90)


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