Folha de S. Paulo


Só começa quando termina

Quem nasceu depois de 1980 não teve a oportunidade de conhecer Abelardo Barbosa, o Chacrinha, mas agora pode saber um pouco sobre ele no filme indicado ao fim deste texto.

Como bem notou o crítico Inácio Araújo, "foi um personagem marcante pela maneira como levava à TV um estado anárquico num país dominado pelo autoritarismo e por uma TV marcada pela submissão". E também por alguns sensacionais bordões que criou.

Um deles era definir o seu programa como aquele que "acaba quando termina". Recentemente, a Folha vem invertendo esse aforismo ao realizar coberturas que começam quando tudo termina.

Isso tem sido muito comum no acompanhamento dos trabalhos legislativos do Congresso. Exemplo desta semana: a nova Lei de Licitações, da qual nada se falou desde 2 de abril e que o leitor soube na segunda ter passado na Câmara e estar pronta para ser votada no Senado.

É errado jornalisticamente e muito pernicioso para a cidadania agir assim com o Poder Legislativo.

Quase tão grave é deixar de informar ao leitor sobre manifestação na cidade com centenas de milhares de pessoas, como fez este jornal no fim de semana passado com relação à Marcha para Jesus, ocorrida em São Paulo no feriado de segunda-feira.

"Precisei ir à zona norte, moro em Jabaquara. No caderno Cotidiano, não havia nenhuma informação sobre a Marcha para Jesus, que alterou o trânsito completamente na região. E eu compro o jornal para que, afinal?", escreveu o leitor Gedeon Alencar. Boa pergunta.

Em 14 de junho, realizou-se em São Paulo a Parada Gay. Na segunda, 15 de junho, texto-legenda na capa chamou para três retrancas internas. Na véspera, haviam saído três matérias sobre ela. Dois dias antes, outras duas. Foi a coisa certa.

Sobre a Marcha para Jesus, nada no sábado, no domingo e na segunda. A cobertura começou só quando o evento terminou.

O certo mesmo para o jornalismo (principalmente neste século) é se esforçar para antecipar os fatos.

José Saramago, no romance recomendado adiante, faz esse diagnóstico ao atribuir a Ricardo Reis a seguinte avaliação: "... são assim os periódicos, só sabem falar do que aconteceu, quase sempre quando já é tarde demais para emendar os erros, os perigos e as faltas, bom jornal seria aquele que no dia um de Janeiro de mil novecentos e catorze tivesse anunciado o rebentar da guerra para o dia vinte e quatro de Julho, disporíamos então de quase sete meses para conjurar a ameaça...".

Pode ser difícil fazer o que Ricardo Reis quer. No caso da Marcha para Jesus, noticiar às suas vésperas que ela aconteceria, iria mobilizar tanta gente e as implicações decorrentes era lição de casa simples.

E o evento poderia ter servido para editar material de qualidade sobre a importância das denominações evangélicas no Brasil, cada vez maior, em especial entre moradores das periferias das grandes cidades. Mas isso tampouco foi feito.

PARA LER
"O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago, Companhia das Letras, 2006 (a partir de R$ 45,09)

PARA VER
"Alô, Alô, Terezinha!", de Nelson Hoineff, 2008 (em exibição em cinemas)


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