Folha de S. Paulo


Golpe hondurenho exige contexto

Um dos piores e mais comuns vícios de jornalistas é achar que seu público acompanha o assunto que cobrem com a mesma assiduidade e nível de detalhamento que eles.

Quem se ocupa a fundo e diariamente de um tema não acha necessário recordar todos os dias seu contexto, já incorporado ao raciocínio.

Mas o leitor de jornal não pode seguir as minúcias de todas as matérias que o compõem. Seu interesse por elas desperta e se esvai com o tempo. O jornal deve ajudá-lo sempre a se situar com informações sobre o passado.

A crise de mais de três meses em Honduras teve surtos de curiosidade por parte dos leitores. O mais intenso após o presidente deposto Manuel Zelaya se instalar na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa em 22 de setembro.

Na semana passada, 59 mensagens chegaram ao ombudsman sobre a cobertura hondurenha. Muitas indicavam que o jornal deixara de fornecer dados essenciais para reavivar a memória do leitor.

Na segunda-feira, por exemplo, a reportagem principal noticiou que o governo interino havia dado ultimato ao Brasil para definir o status de Zelaya, mas não dizia que ele estava definido fazia dias: é de "hóspede", não asilado.

Desde o recrudescimento da crise, só na quarta-feira a Folha se dignou a alinhavar perguntas e respostas básicas para compreender a sua origem. Foi só nesse dia também e ontem que retomou o controvertido argumento da suposta constitucionalidade da deposição de Zelaya, de que já havia tratado extensivamente na edição de 1º de julho.

Muitos leitores dizem que o jornal erra ao chamar o governo de Roberto Micheletti de "golpista". A queixa não procede. O "Dicionário de Política" de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino define o que é golpe e as ações contra Zelaya claramente se encaixam no conceito.

O regime de Micheletti não é reconhecido por nenhum país ou organização multilateral. Embora seja possível achar na Constituição do país artigos que embasem supostas ilegalidades cometidas por Zelaya, nenhum ampara a sua retirada do país em pijama e a toque de armas sem nenhum tipo de processo legal para se defender.

A Folha foi o primeiro veículo a entender a importância dos fatos em Honduras e refleti-la como prioridade editorial, continua bem na cobertura, mas enfrenta dificuldades. Seu enviado especial está confinado na embaixada, o que o impede de colher informações na sociedade. Ontem, o jornal o reforçou com o envio de uma jornalista.

Foi só na sexta que dados essenciais sobre os efeitos econômicos da crise chegaram ao conhecimento do leitor. Ainda não se falou nada sobre a situação da comunidade de brasileiros em Honduras. Pouco se sabe sobre a posição dos diversos setores da sociedade civil hondurenha sobre a crise.

No terreno da opinião, registrou-se na edição de terça incômoda unanimidade na página A2, em que todas as colunas e o editorial adotavam ponto de vista único sobre o papel do Brasil na crise. Em benefício do leitor e em nome da diversidade, outras posições precisam aparecer no jornal.


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