Folha de S. Paulo


Jornalismo não rima com deboche

O Congresso Nacional vem sendo soterrado há dois meses por uma avalanche de revelações sobre impropriedades que vão de castelos no deserto a diretorias-fantasmas passando por milhares de passagens aéreas para familiares, amigos e namoradas.

São escândalos que têm características ideais para agradar ao público: chocantes, divertidos, mundanos, despertam a justa indignação de quem trabalha muito para financiar com o imposto que paga essa farra irresponsável.

Todos esses episódios precisam mesmo ser denunciados com vigor. A sociedade tem o direito de saber com detalhes o que as autoridades públicas fazem com o seu dinheiro e de exigir punição para quem extrapola.

O jornalismo tem o dever de apurar tudo que houver de irregular e de expor à execração nacional todos os que abusarem da confiança coletiva.

A Folha tem cumprido o seu papel. Mas o viés moralista que adota como prisma para o enfoque dos fatos é insuficiente para colaborar com a melhoria das instituições e traz em si um risco enorme de ajudar a corroer a confiança da sociedade nelas ao incentivar uma ira paralisante.

Esse enfoque destrutivo atingiu seu ápice na quarta-feira, quando a edição da página A4 derrapou completamente e se estatelou no deboche, território do humorismo, não do jornalismo.

A zombaria grosseira pode alimentar a sanha vindicativa de parte dos leitores. Mas dificilmente coopera para organizar a cidadania de modo a corrigir as distorções e aperfeiçoar a prática política.

Na semana toda, o jornal dedicou dois pequenos textos (um no domingo e um na quinta-feira), num total 67 cm, para oferecer análises minimamente estruturantes dos problemas, entendê-los e propor soluções.

No livro sugerido ao lado, John Thompson, da Universidade de Cambridge, chega à conclusão de que "a cultura do escândalo político dificilmente facilitará a tarefa de criar uma forma de democracia mais forte e inclusiva". A Folha, com o tipo de cobertura que tem feito, insufla essa cultura.

Por que não mostrar ao leitor-cidadão como agir para interromper essa vertente de destempero do Congresso? Quais são as ONGs que se dedicam a combatê-la? Que medidas podem ser tomadas para estancá-la?

E por que não um pouco de autocrítica? Talvez nenhum jornalista tenha agido como o do personagem de Jude Law no filme indicado ao lado, que colabora ativamente com os desmandos de um governador corrupto.

Mas por que o jornal não apontou antes a existência de mais de dois diretores por parlamentar no Senado? Como não acusou por 49 anos a sobrevivência das passagens de Brasília ao Rio, oferecidas na mudança da capital? Quantas vezes ele não terá sido usado como instrumento de políticos que desvelam os abusos do inimigo apenas para se beneficiar?


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