Folha de S. Paulo


Quando se sabe que o galo vai cantar

O leitor Marcelo Procópio de Oliveira, de Lavras, interior de Minas Gerais, ligou na quinta-feira para saber por que a Folha insiste em chamar a União Soviética de "ex-URSS". Ele estava especialmente encafifado com a notícia exposta na primeira página, segundo a qual a "ex-URSS" iria retirar suas tropas de Cuba. "Como um país que já era pode fazer tal coisa? E o Gorbatchev, é o presidente do quê? Daquilo que não é mais?"
Relatei-lhe que a denominação vinha sendo usada havia alguns dias e depois de o jornal ter dado manchete na qual decretara o fim da União Soviética, no dia 26 de agosto: "Acabou a União Soviética". Na crítica interna daquele dia eu mesmo questionara esse enunciado: "Se acabou a União Soviética então Mikhail Gorbatchev é presidente do quê? Então por que chamar Boris Ieltsin de homem forte da URSS hoje?"
Procurava-se transmitir com aquele enunciado, é óbvio, algo próximo do real, ou seja, a desagregação ou flagrante desunião da união das repúblicas ditas soviéticas. Naquele mesmo dia, dois outros jornais interpretavam com mais acuidade os acontecimentos. Faziam-no sem exagero de interpretação e sem abuso de imagem. "A União Soviética está se esfacelando", dizia o "Jornal da Tarde", "Oito repúblicas já deixaram a URSS", resumia "O Globo".
Na realidade, mesmo desmilinguindo-se, a União Soviética recusou-se a seguir a manchete da Folha Permaneceu na tentativa de reorientar-se a partir de novas bases depois da contra-revolução pacífica que, com a população nas ruas e a liderança de Ieltsin, reconduziu Gorbatchev ao poder.
Assim como também decretara apressadamente o "fim da era Gorbatchev", a Folha dava como fato consumado algo que poderá ser bem real em pouco tempo, o fim da URSS. Contudo, para que o antecipado decreto jornalístico encontrasse eco nas páginas do jornal, e não fosse desmentido pelos próprios fatos narrados nas páginas do jornal, saiu-se com essa de chamar a atual URSS de "ex-URSS". Até os despachos das agências internacionais (que por enquanto não seguem as normas da Folha) sofreram essa intervenção linguística.
Expliquei tudo isso ao leitor e até ajuntei minha discordância. Mas o fato merece um pouco mais de reflexão porque tem muito a ver com a personalidade do jornal.
Isso acontece nos momentos nos quais a Folha ainda nem ouviu o galo cantar mas intui que ele vai cantar, nunca se sabe aonde. O jornal então antecipa o canto do galo. Essa operação interpretativa mais irrita do que informa o leitor. O jornal já fez o mesmo, por exemplo, com o Pacto de Varsóvia, a organização militar que reunia os países do leste nos tempos da guerra fria. A Folha acabou com o Pacto muito antes da sua ruína. Quando ele se desintegrou oficialmente, o jornal autopromoveu-se afirmando ter "adiantado" a notícia. É o que provavelmente deve acontecer acontecer quando os escombros da União Soviética adotarem outro nome e outra configuração geopolítica.
Ninguém se engane. Essas são as mais fáceis operações de "adiantamento" jornalístico de serem realizadas.
Acompanhe uma imagem. Dizer que o Pacto de Varsóvia ou a URSS acaba, no contexto, seria igual à publicação da seguinte manchete hipotética: "Gorbatchev morre". Na sequência dos fatos verifica-se que ele continua tentando viver. O jornal então passa a defini-lo como moribundo. Quando ele morrer, o jornal pode gabar-se de ter "antecipado" a sua morte.
O problema dos jornais não é o erro, mas os mecanismos capazes de evitá-los ou consertá-los quando acontecem. Na realidade, todos erram muito. Isso é inevitável num produto feito por tantas cabeças diferentes e tratando dos assuntos os mais diversos. E a Folha, que exibe seus erros (na seção Erramos) com a maior transparência, deveria de vez em quando ver que exagerou aqui e ali. No caso, fazer a autocrítica e arquivar essa ridícula "ex-URSS". A União Soviética ainda não acabou de vez.

Retranca
Excelente a sequência de fotos publicada na Folha de quinta-feira mostrando um rapaz quebrando o vidro de um carro e levando o toca-fitas. Trabalho do fotógrafo Antônio Gaudério, de prontidão numa rua da região central de São Paulo. Pena que o resultado tenha sido apenas fotográfico. O leitor ficou sem saber de quem era o carro e quem eram os policiais que por ali passaram e nada fizeram. Só no outro dia, a sexta-feira, é que o leitor mais atento pôde ver numa notinha no meio da página 4-3 que nenhuma queixa de furto do toca-fitas foi registrada no 5° Distrito Policial. Só.

Já se esboça gritaria da imprensa contra parte do projeto da nova Lei da Imprensa em tramitação no Senado. A parte na qual se prevê multa, indenização por dano moral pelas pessoas ofendidas por calúnia, injúria ou difamação. O "Jornal da Tarde" de sexta-feira condenava em editorial esse mecanismo dissuasivo. Ao legislador cabe não se intimidar. Multas pesadas sobre jornalistas (ou empresas de comunicação) que difamam sem comprovação devem ser aplicadas sem dó nem piedade pela Justiça. A nova lei extirpa da Lei de Imprensa da ditadura a detenção para jornalistas - e isso está corretíssimo. A lei que ainda vale é uma peça do mais extremado autoritarismo. Mas uma lei que preveja forte indenização pecuniária poderá ser um breque contra muitos jornalistas que exercem de maneira irrefreável sua irresponsabilidade difamatória nas televisões, rádios, revistas e jornais.

A respeito de minha pergunta final na coluna de domingo passado (por que as outras publicações brasileiras não tiveram até agora coragem de adotar um ombudsman) eu recebi resposta do próprio leitor que a provocou, Edoardo Giannotti. Ei-la: "Sua indagação parece irrespondível. Talvez não seja. Quando a Brahma proclamou que sua cerveja era a número um, por mais estúpidos que fossem os publicitários da Antarctica, jamais utilizariam a mesma expressão. E de nada adiantou a campanha marcada por um esquisito tom autoritário: 'Antarctica, a melhor cerveja do Brasil. E não se fala mais nisso'. Bobagem. A concorrente havia descoberto o mapa da mina. A Antarctica foi esmagada. A vulnerabilidade do 'Estadão' e do 'Jornal da Tarde' diante da Folha seria trágica, caso ousassem pensar em termos de ombudsman. Estariam entregando o banquete ao bandido. Só lhes restava, portanto, proclamar que são os melhores jornais do Brasil. 'E não se fala mais nisso'. Simples questão de marketing, portanto."

A propósito, o jornal "Zero Hora", de Porto Alegre, promoveu na semana passada seminário sobre modernidade em jornal. Quem encerrou o encontro foi o professor de jornalismo Claude Jean Bertrand, da Sorbonne (Paris). Na ocasião, conforme o próprio "Zero Hora", ele defendeu a existência dos ombudsmen como "um fator importante no controle de qualidade da mídia". Bertrand lamentou também o número reduzido de defensores do leitor em atividade em todo o mundo, "menos de cem". É verdade, existem apenas 73 ombudsmen de imprensa.


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