Folha de S. Paulo


Pausa para os leitores

A coluna de hoje é de responsabilidade de quatro leitores. São três cartas e um telefonema. Numa das cartas se realiza a crítica da mídia sob o ponto de vista social. Nas duas outras os leitores examinam a atuação deste ombudsman. No telefonema, uma leitora ilustre interpõe questão que eu pensava resolvida na cabeça dos leitores. De resto, continua de pé o velho provérbio latino, "Tot capita, tot sententiae": cada cabeça, cada sentença.

*

A primeira carta veio por fax, enviada pelo leitor Oscar Eustachio, de São Paulo. Ele escreveu, em parte, a coluna que eu gostaria de ter escrito hoje. Mas atenção! Discordo de muitas das opiniões por ele emitidas. Eustachio, porém, levanta discussão que vai à gênese da notícia - no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Escute-o:
"Companheiro: está certo, está certo. No caso do duplo assassinato em Moema, a notícia principal era mesmo a morte da estudante. O crime foi realmente revoltante, a família da moça merece toda a solidariedade etc. e tal.

"Só tem uma coisa: a cobertura da imprensa em geral - e não apenas da Folha -, em certo sentido chega a causar asco.
"Fica difícil fugir do chavão: Mataram uma jovem rica? É uma tragédia! Assassinaram um jovem trabalhador? É mais um número para a estatística.
"Da mocinha, ficamos sabendo de tudo. Jornais, rádio e TV, todos os detalhes. Era jovem, morava sozinha num duplex de cobertura, tinha família, namorado. E assim por diante.
"E do rapaz? Nenhuma informação. Tinha pai e mãe? Deixou filhos? Namorada? Tinha sonhos? Um futuro? Nada. Um zero à esquerda. Parece ter vindo ao mundo com o único objetivo de se tornar coadjuvante de um comovente espetáculo jornalístico.

"Sem entrar no questão dos compromissos de classe da grande imprensa, fica a constatação, pelo menos, de que os veículos de comunicação perderam uma boa possibilidade. Se alguma editoria tivesse sido menos burocrática, teria se lembrado de, no mínimo, escalar um repórter para o enterro do rapaz, levantar depoimentos de amigos e parentes, expor os contrastes entre as duas cerimônias ocorridas em cemitérios distantes.
"Ouvindo as repercussões pelo rádio, então, o mal estar só tinha mesmo que aumentar. Dezenas e dezenas de telefonemas de moradores de apartamentos de luxo criticando a falta de segurança nos condomínios, o despreparo dos porteiros, zeladores e outros serviçais.

"Ninguém - ou quase ninguém - para perguntar quanto ganham e como são obrigados a viver esses profissionais, a instrução que lhes é oferecida.
"Algum jornal pegou a deixa? Não - pelo menos que eu tenha lido. Ou melhor: pegou mais ou menos. O "Jornal da Tarde" do dia 5 de setembro saiu com uma repercussão interessante sobre um empresário que vive com a família numa verdadeira fortaleza, cercado de seguranças e equipamentos por todos os lados. Mas nenhuma linha sobre as condições de trabalho dos profissionais envolvidos - porteiros, zeladores, vigias e outros. Tudo bem: Se no próximo crime espetacular algum deles tiver o mau gosto de morrer, mais um número para as estatísticas."

*

A segunda carta é de uma leitora e nem foi enviada diretamente a mim, mas para o jornal e com cópia para o jornalista Boris Casoy, do SBT. Noemi Maruyana, de São Paulo, reclama deste ombudsman:
"A respeito do golpe de Estado soviético, tendo constatado divergências entre as versões da Folha de 19 de agosto passado e de Boris Casoy em seu "TJ Brasil" da véspera, resolvi procurar esclarecimentos junto ao ombudsman. Minha dúvida referia-se à possibilidade de os russos estarem mais preocupados em preservar sua própria autonomia do que com a URSS em si. Mas ao dirigir-se ao sr. Caio, surpreendeu-me a rispidez com que fui tratada, como se ele tivesse 'tomado as dores' de alguém. Não se dando conta do quanto o assunto era importante para mim, ele nem me ouvia direito; sequer me deixava falar. É óbvio, portanto, que não se prontificou (ou não fingiu que se prontificou) a estudar melhor o assunto, muito menos a questioná-lo junto ao sr. Casoy. Ao contrário, limitou-se a ofendê-lo e, pior ainda, aconselhou-me a 'ler com mais atenção pois tudo isso consta da Folha'. Mentira. Dissequei o jornal de cabo a rabo e não há qualquer menção de que os manifestantes russos estariam gritando Ieltsen, e não Gorbi - ponto-chave de nossa discussão.
"No geral, as ponderações do sr. Caio faziam sentido, mas ofendeu-me a maneira com que foram feitas. Isso desencoraja os leitores a se dirigirem diretamente a ele. Por isso mesmo, da próxima vez vou procurar o próprio Casoy, a quem conheço pessoalmente e admiro como jornalista e ser humano."

Eu também. A carta revela o que aconteceu algumas vezes: perdi a paciência. Desculpe-me, Noemi. Não entendi, naquele momento, que o seu ponto era apenas os gritos dos moscovitas: Ieltsin, Ieltsin! Tentei lhe mostrar que tanto Boris quanto a Folha estavam dando, além das informações, interpretações sobre a crise na URSS. Daí ter dito que Boris Casoy tinha o direito de ter suas opiniões (o que você confundiu com ofensa). Mas você tem razão. A Folha deixou mesmo de ressaltar, naquele dia, os gritos pró-Ieltsin.

*

O telefonema é de uma artista, Cláudia Raia. Ligou como leitora e personagem de notícia. Ela se queixou da inclusão de opinião nos resumos de espetáculos publicados no roteiro da Ilustrada, o Acontece.
Claudia Raia respeita a crítica mas considera "injusto" que ela invada o roteiro. Sustenta que um texto opinativo no roteiro pode esvaziar espetáculos e sente-se lesada com o roteiro da Ilustrada.

"Quem deu ordem para o roteiro falar mal do meu produto?" Claudia perguntou também se é jornalístico dar opinião no roteiro.
Conforme resposta do então editor da Ilustrada, jornalista Mario Cesar Carvalho, a Folha optou por um roteiro que mescla opinião e informação "por julgar que esse tipo de serviço fica mais completo assim; permite ao leitor ter algum tipo de baliza". Ele acrescenta, sobre o musical de Claudia Raia, que a nota do roteiro é uma síntese da crítica publicada pela Folha logo após a estreia.
Em meu despacho ao diretor de Redação, depois de analisar o assunto, considerei que não existe nenhum impedimento para um jornal colocar opinião no roteiro. É da tradição que aqueles textos de resumos de espetáculos não sejam opinativos. Mas as tradições estão aí, muitas vezes, para serem quebradas - ou superadas!

No entanto, ponderei, a coisa pode ser feita de maneira menos agressiva. Dei sugestão de que os resumos sejam acríticos como antes, mas acompanhados de uma ou duas frases dando conta de qual foi a opinião do crítico do jornal sobre o espetáculo. Algo no estilo: O crítico Fulano de Tal considerou o show "brega e desordenado". Ou então: O crítico Beltrano elogiou o musical: "deslumbrante". Ou as duas opiniões quando os críticos divergirem.

*

O quarto leitor é Edoardo Giannotti, de São Paulo. Ele me escrevia mais quando iniciei este serviço de atendimento ao leitor. Parou um tempo e na última semana recebi sua carta mais cética. Vai na linha da crítica do "marketing" da Folha com seu advogado dos leitores. Reproduzo a parte mais significativa:

"Estimado Caio Túlio Costa. Sobre o que você escreveu no dia 25 (cobertura da crise na URSS): comentário muito longo, insistindo no que me parece de importância menor. Quem noticiou primeiro, o que noticiou, por aí.

"Se não fez ainda, o Frias deveria logo logo aumentar seu ordenado. Que você é um profissional competente, não se discute. Mas não é por isso que você deveria parar de faturar uns cruzeiros a mais. A questão é que você faz com muita habilidade exatamente o que o dono do jornal, comenta o coitado do leitor, na sua simplicidade cabocla. Deixa que o jornalista lasque a lenha à vontade no próprio jornal. Tem emprego garantido e prestígio nas nuvens. Quanto mais insiste em que o jornal falhou aqui, omitiu ali, foi insuficiente mais adiante, tanto melhor." E lá vai a Folha faturando pluralismo , democracia, mais publicidade e, claro, muito mais dinheiro e poder."
Muito bem. Me responda então uma coisa, senhor Giannotti: Se esta operação de autocrítica lje parece assim tão engenhosamente boa para um jornal, por que as outas publicações brasileiras não tiveram até agora a coragem de adotar também um ombudsman?


Endereço da página: