Folha de S. Paulo


Pisando em ruínas

Os americanos do norte e do sul foram pegos de surpresa domingo passado de noitão. Eram 23h27 nos Estados Unidos, 0h27 de segunda-feira em Brasília, quando a Cable News Network (CNN) colocou no ar a notícia do golpe na União Soviética. Nem o presidente norte-americano sabia. Como Mikhail Gorbatchev, George Bush estava de férias. É verão no hemisfério norte. Agosto não é abril, cantado pelo poeta como o mais cruel dos meses, mas nele também germinam sementes além da terra morta, misturando memória e desejo, aviando agônicas raízes...

Quem conseguiu dormir, mesmo preocupado com os destinos do mundo, talvez esperasse saciar na manhã agoniada de segunda-feira um outro desejo, o de manusear elementos para começar a entender o ininteligível. Menos os leitores desta Folha. Sobre o golpe, a edição da segunda-feira veio muda. Atestava a derrota da imprensa ante a instantaneidade da televisão. Punia os leitores com a omissão de informação, reflexão e análise sobre o acontecido na URSS. Aliás, em São Paulo, seu principal concorrente, "O Estado de S. Paulo, idem. Não circula às segundas e nem produziu uma edição extraordinária. Quanto à "Folha da Tarde" e "Jornal da Tarde", ibidem.

A desinformação na atingiu, porém, a totalidade de leitores dos dois principais jornais cariocas. "O Globo" ("Gorbatchev é deposto") e "Jornal do Brasil" ("Gorbatchev sai e URSS decreta emergência") encontraram tempo e sensibilidade para trocar a manchete em segundo clichê. Em Porto Alegre, o matutino "Zero Hora" honrou o nome e abriu a primeira página: "Linha-dura derruba Gorbatchev do poder na União Soviética". Trazia até foto de Gennadi Ianaiev, de lambuja. Lá fora, somente os europeus não não conseguiram sair com a notícia. Ela chegou de manhãzinha, quando todos os jornais estavam impressos (e ao noticiá-la, na terça-feira, a imprensa europeia já ressaltava o papel de Boris Ieltsin, enquanto os jornais daqui ainda demonstravam perplexidade com o golpe). Nas Américas, até o insuspeito "Gramma", de Cuba, conseguiu enfiar no pé de sua primeira página de segunda-feira a cuidadosa informação: "Assume Ianaev las funciones presidenciales em la URSS". Oficialesco. Mas deu.

Alguns leitores procuraram o ombudsman para perguntar por que o seu jornal, aquele da propaganda que explora o fato de circular às segundas, calou-se na exata segunda-feira da notícia. Na Redação, explicam a falha por causa de dois problemas básicos. Primeiro, uma lacuna no plantão: não havia ninguém na Agência Folha no momento da divulgação do fato. O despacho da agência "Tass" marca 6h20 em Moscou (0h20 em Brasília) e teria chegado à redação por volta das 0h45. Segundo problema: a essa hora também não havia mais ninguém no plantão da primeira página. A orientação existente era a de se esperar até a impressão de 50% da edição. O jornalista Alon Feuerwerker, secretário de Redação, explica a mudança desse critério. O plantão na primeira página vai agora até 1h30 da madrugada, quando não existe mais tempo hábil para incluir mudanças porque a rodagem está chegando ao final. E o plantão na Agência Folha, conforme comunicado datado de sexta-feira, será de 24 horas ininterruptas daqui pra frente.

Sobra o principal: era possível a inclusão da notícia em quase metade da edição da Folha. Ela não o fez. As atitudes tomadas a posteriori são de extrema importância e revelam respeito para o leitor, mas não desculpam a falha. Em todo caso, salvam-se os jornais. Porque circulam todos os dias e sempre possível recuperar o tempo perdido.

Foi o que a Folha passou a fazer. Se conseguiu dar a cobertura mais larga em termos de fatos e análises (49 páginas de terça a sábado, contra 37 do concorrente imediato, o "Estado", 30 do "Globo" e 23 do "JB") ela se confundiu, principalmente, em enunciados como da manchete de terça: "Golpe conservador marca fim da 'era Gorbatchev' na URSS". A Folha tinha mais certeza do não retorno de Gorbatchev do que os próprios golpistas. Apressou-se em enterrar talvez o começo do fim de uma era, mas não a sua marca, porque Gorbatchev voltou. Ele retornou desatualizado, sem entender direito que o chão sobre o qual pisava era o das ruínas do comunismo - mas voltou.

Interessante notar como os jornais se preocupam sobretudo em fazer valer as suas interpretações mais superficiais do que em buscar o aprofundamento da análise algo praticamente impossível de ser realizado teleologicamente pela televisão. Importa é garantir a interpretação mais confortável ao desejo de realidade de cada um. Para o "Estado", por exemplo, era vital dar sequência à afirmativa de sua manchete de terça. "Ocidente tenta salvar perestroika". Fracassado o golpe, o "Estado" dava a ordem de importância aos fatores que considerou mais relevantes: "Impulsionado pela mobilização popular, por uma impressionante sucessão de pressões internacionais - os Estados Unidos à frente - e pela resistência pessoal e heroica do presidente da Federação Russa Boris Ieltsin, Gorbatchev pode voltar a Moscou". A pressão americana vem citada curiosamente antes da ação de Ieltsin, o maior responsável pela resistência.

Paradoxalmente, a televisão (a Globo!) conseguiu traduzir com mais agilidade a interpretativa do que os jornais o "processo" em Moscou. Colocado por sorte providencial na capital russa nos dias da crise, o jornalista Pedro Bial foi o primeiro a explicar que o comunismo está sendo atacado e o primeiro a dizer - na sexta-feira, ao meio-dia - que Gorbatchev foi várias vezes interrompido no Parlamente russo ("chega de conversa fiada"). Ieltsin se dirigia a ele dando ordens e a multidão pedia a sua renúncia.

Nas manchetes de ontem, três dos grandes jornais (salvo o "Globo") já apontavam Ieltsin como responsável pelo cerco ao comunismo. Esta Folha chegou alertar para a possibilidade do golpe. A dinâmica dos acontecimentos impede análises conclusivas, só não se pode negar os fatos. Nesse caso, nenhum jornal contou aos leitores, por exemplo, as razões pelas quais Gorbatchev não fala às multidões como o faz Ieltsin. Alguém se lembra de Kerenski?

De outro ângulo, embora dedicando a maior quantidade de páginas ao assunto, a Folha também refletiu o descompasso da imprensa diária brasileira quando se trata de noticias e analisar acontecimentos do exterior. Os ganhos em abrangência (notícias de todos os lados, repercussões em todos os países, cenas, mapas e gráficos) aparentemente como pensam as perdas de detalhes tanto no texto quanto na imagem. Uma pequena lista de omissões na Folha mostra o quanto é necessário avançar em ocasiões como esta. Por exemplo, você não teve:

*Foto de Ieltsin discursando sobre o tanque de guerra. O "Globo" deu.
*O texto integral de 16 pontos da primeira resolução da junta. A "Gazeta Mercantil" teve.
*Destaque para fala de Yanaiev (o vice de Gorbatchev) ao ameaçar "atirar em quem desafiar o poder do Comitê de Emergência". O "Globo" o fez.
*Explorado em manchete ou submanchete de primeira página a evidente divisão na junta. O "JB" deu em manchete na quarta-feira. "Linha dura já está dividida e soviéticos desafiam golpistas."
*Apresentando e analisando em detalhes como o golpe foi aplicado às pressas e como foi a operação de prisão de Gorbatchev, montada pelo KGB. Quem melhor o fez foi o jornal americano "The New York Times".
*Contado que os golpistas tiveram em mãos o controle total do arsenal nuclear do URSS. O "JB" deu essa notícia na sexta-feira.

Não são omissões fundamentais, evidente. Os leitores da Folha tiveram a mais extensiva cobertura do conflito. O maior defeito do jornal no episódio todo, até agora, foi não ter tido a estrutura, a agilidade e a vontade editorial necessária para interpretar, no seu primeiro anúncio, a importância da notícia que chegou na madrugada de segunda-feira e abalou o mundo. É, pelo jeito, vai continuar abalando. Parece que desta vez enterram de vez o comunismo no que restar da Desunião Soviética.


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