Folha de S. Paulo


O rapaz morto

Em quase dois anos de mandato, a maioria das queixas e protestos recebidos aqui se referia à parte de texto do jornal, determinadas atitudes editoriais, erros de grafia ou de informação. Na semana passada, diversos leitores procuraram o ombudsman para coordenar a fotografia publicada no alto da primeira página de terça-feira. Aquela do corpo do jovem Alberto Loricchio numa maca do Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro, reproduzida nesta página.

"Achei que parecia fotografia de jornal de segunda categoria", disse a leitora Glaura Bitencourt, psicóloga. "A Folha , não bastassem os últimos declínios, hoje nos brindou com uma foto teratológica e desnecessária", definiu o estudante de direito Sérgio Eduardo de Oliveira Pacca. "Não acrescenta nada", afiançou a editora de vídeo Cecília Teixeira Tavares. Ela estava tomando seu café da manhã quando viu o jornal e garante ter perdido a fome e o bom humor. "A Folha está muito sensacionalista", Marta de Souza, professora universitária no Rio, "quase" jogou o jornal no lixo. "Isso é uma coisa desumana, ele tem pais, será que vocês não pensaram nisso?". O leitor Paulo Victorino, de São Paulo, mandou bilhete perguntando se foi cochilo da redação ou mudança editorial. "Em um ou outro caso, ponto negativo para a Folha", concluiu.

Recebi outros protestos, na mesma linha. Ainda devo receber mais, vindos pelo correio, tenho certeza. Há tempos que uma foto não provocava tanto os leitores. Passei as observações recebidas para a direção do jornal a título de conhecimento. Como de hábito, não discuti o assunto nem polemizei com os leitores, porque é importante saber quais são as reações e que os responsáveis pela Redação tomem conhecimento delas. Praticamente todos os leitores que ligaram acharam a foto típica de jornais reconhecidamente sensacionalistas, como o "Notícias Populares", brasileiro, ou o "The Sun" inglês.

Na terça-feira, no entanto, a minha crítica interna circulou com um baita elogio, coisa rara: "Excelente a fotografia do rapaz do caso Xuxa, de autoria de Frederico Rozario. Ela denota frieza, despojamento e abandono. Diz mais do que qualquer texto sobre a morte do jovem."

Usa-se muitas vezes a palavra "sensacionalismo" sem atentar muito para base de seu significado. Sim, trata-se de fotografia "sensacional" em todos os sentidos do termo: pelo tema, pela luz e pelo seu enquadramento. Ela provoca sensação forte, desmedida. Diferente daquele significado corriqueiro que se dá ao termo sensacionalismo, porque não se exagerou, não se distorceu, nem se aproveitou fotografia para escandalizar ou provocar engulhos nos leitores.

Tanto que, na no dizer do diretor de Redação, Otávio Frias Filho, ao me despachar de volta os protestos, a fotografia lhe lembrava Caravaggio (1571-1610). Ele falava do pintos italiano que trabalhou genialmente o "chiaroscuro", o jogo de luz sombra, a alma do que viria a ser depois da fotografia. E a foto do rapaz vai além pelo que insinua com o seu despojamento. Lembra, pela perspectiva, ainda mais o Cristo Morto de Mantegna (1431-1506), outro grande mestre da pintura italiana.

Existe, antes de tudo, um mistério muito grande em torno da aventura desses dois irmãos paulistas que encontraram a morte no Rio de Janeiro. Otto Lara Resende dedicou sua coluna na quinta-feira para discorrer sobre o episódio cujo "mistério nos desafia". Ele ensaiou: "O ato gratuito de Gide, quem sabe. A insensata busca de aventura, a qualquer preço". Tendo em mãos a foto do corpo jogado sobre a maca, quando a medicina garantia não haver mais tanto risco de vida; possuindo a informação jornalística (a foto) como não publicá-la? E como deixar de fazê-lo sem o merecido escândalo?

Pois foi o que o jornal fez. A foto, limpa, talvez possa até tirar o apetite de alguns de nós, a pachorrenta classe média, inconscientemente desejosos de ver bem longe a miséria, tirar de nossa frente a brutalidade da vida brasileira em seus contornos mais trágicos, como a sala fria e suja de um necrotério público. A foto nada tem de mau gosto. Não possui um único elemento brutalizador conseguido por intermédio de cortes, rosto desfigurado, sangue. Nada. O corpo jaz inerte. Tão inerte quanto os cidadãos no desvendamento do que aconteceu com esses dois rapazes - aparentemente empenhados numa missão suicida de "salvamento" de uma paquita e de Xuxa, "exploradas sexualmente", conforme o único depoimento restante dessa história e ainda por cima contestado pela polícia carioca.

Não se trata de fotografia de ação, como aquelas que definem tradicionalmente o fotojornalismo. É a foto de um rapaz morto, não se sabe como. "Parada cardiorrespiratória", no dizer do diretor do hospital penitenciário. As razões reais da morte, a imprensa talvez jamais conseguirá saber. O registro fotográfico desse corpo, no entanto, ficará como um dos momentos mais solenes do fotojornalismo neste ano, anotação pura de um mistério, desses dos quais os jornais pouco podem fazer para desvendar.

Como escreveu Otto Lara Resende, "o silêncio dos dois túmulos pesa, cruel, sobre o Rio e sobre São Paulo".


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