Folha de S. Paulo


Sobre dessintonias e sintonização

Os críticos literários estão se refestelando com o novo livro de Chico Buarque, "Estorvo". Um dos méritos da novela está exatamente na sua capacidade de tirar do casulo analistas costumeiramente refratários ao trabalho sistemático na imprensa. Chico, por ser Chico Buarque, conseguiu fazer funcionar Roberto Schwarz (em "Veja") e Benedito Nunes (nesta Folha). Ambos foram de generosidade ímpar. "Relato exemplar de uma falha, de uma vertigem, de uma despossessão" (Nunes). "Brilhante, escrito com engenho e mão leve" (Schawarz). Outros idem: "Humor fino, muitas vezes cruel, mas em tudo ajustado ao drama brasileiro" (Sérgio Sant'Anna, no "Jornal do Brasil"); "Há tempos não surge na ficção nacional um romance tão bom, uma narrativa tão perturbadora, um autor de técnica tão apurada" (Okky de Souza, na "Veja"). A babação de ovo; porém teve vozes discordantes: "O livro é bem realizado mas incompleto" (José Onofre, em "O Estado de S. Paulo"); "Tanto tem a virtude pós-moderna de ser indiferente, que é indiferente que tenha sido escrito por Chico Buarque" (Renato Pompeu, no "Jornal da Tarde"); "A história, o 'romance', não decolam, e 'Estorvo' vale mais pelo que descreve pelo que narra" (Marcelo Coelho, na Folha); "O livro não é exatamente ruim, mas chato" (Mário Sabino, em "Isto É Senhor"). Contudo, mesmo os mais exigentes não deixaram de lado palavras de apoio para "Estorvo", um sopro de criatividade no modorrento panorama literário. Mas a atividade em torno do "Estorvo" veio a mostrar, também, o quanto a crítica cabocla, medalhões incluídos, está distante da realidade literária internacional. Ninguém notou, por exemplo, que o livro se insere na tentativa francesa de recuperar o Nouveau Roman que conseguiu sucesso "cult" em meados dos anos 80. "Estorvo" é decalque de estilo de novelas como "La Salle de bain" (já traduzida no Brasil), do belga Jean-Philippe Toussaint, radicado na França. Ele revelou a moçada cansada dos anos 80, fotografou o vazio existencial e a falta de perspectivas numa Europa recheada de futuro em contraponto ao Brasil carente de futuro de "Estorvo", a metáfora de um individualismo sem rumo, da impossibilidade e da impotência. O personagem de Toussaint também naõ tem nome, sai de sua banheira (onde se enterra) para vagar sem desejo sem sensações por uma Veneza inerte e vazia... Nesse sentido, o original é melhor. Mas, se "Estorvo" reboca certa falta de sintonia da crítica com o mundo, ao menos obrigou-a a refletir um pouco e desenferrujar conceitos. Ainda: deixou-se de lado maneirismo do deboche. Coisa certamente passageira.

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Telefona o jornalista Etevaldo Dias, editor-executivo do "Jornal do Brasil". Diagnostica problema dos mais chatos na grande imprensa: "É muito difícil um jornal creditar o outro um furo jornalístico". O "JB" publicou domingo passado material exclusivo e explosivo. Reproduzo o "lead" (a abertura do texto), publicado na primeira página: "Em menos de um ano e meio de mandato, o governo do presidente Collor gastou US$ 65 milhões em seu orçamento secreto com pesquisas nucleares e custeio de ex-funcionários do SNI, hoje lotados na Secretaria de Assuntos Estratégicos". A Folha, na edição de terça-feira passada, deu conta das tentativas no Congresso para fiscalizar verbas nucleares secretas - inciativa provocada pelo material do "JB". No pé do texto de responsabilidade de três jornalistas, a Folha informava que o jornal francês "Le Monde" afirmara que o "governo brasileiro gastou desde a posse de Collor mais de US$ 65 milhões para financiar pesquisas nucleares secretas". O "Monde", evidentemente, reproduziu a reportagem do "JB". "Então, o 'Monde', que reproduz a notícia, merece crédito e o 'JB' não?". Etevaldo Dias tem razão. Ainda mais quando o "Manual Geral de redação" da Folha reza no verbete "furo": "O furo deve ser atribuído nominalmente ao veículo que o conseguiu, sem constrangimentos".

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Estreou quarta-feira o caderno São Paulo-SP, especial para os leitores paulistas. Está gordo de textos, de anúncios e bonito graficamente. Um único reparo: chegou prometendo mais do que deu. Sua principal reportagem garantia que o paulistano pode captar 50 canais de televisão. Quem foi conferir a lista viu que os canais (descontadas as reoetições, como de uma mesma emissora em canais diferentes) eram na realidade 36. Discuti o assunto na crítica interna e diária e me explicaram ser possível pegar 50 canais, sim, embora não me tenham convencido ser possível captar 50 emissoras diferentes (nem discuto a tecnicidade da palavra "canal", no senso comem ela significa "emissora"); Isto porque inexistem 50 emissoras diferentes de televisão nos ares da cidade, apesar de ser possível chegar a um número perto da meia centena com um artifício. Basta contar algumas emissoras mais de uma vez. Por exemplo, três canais para a Globo: o de Manaus e o do Rio de Janeiro. Ambos via satélite, e o canal 5 de São Paulo. Como os jornalistas da casa não podem telefonar para cada leitos e dar explicação, o jornal fica devendo a lista completa, correta e numerada dos canaus e das emissoras captáveis na cidade.

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Outro ponto negativo desta Folha na semana passada, falta de sintonia com a notícia, apareceu na edição de quinta-feira, quando deixou de investir no melhor assunto jornalístico do dia. Dois jovens, classe média, transformaram um Chevette num simulacro de carro de James Bond (com bombas, escopetas artesanais adaptadas nas partes traseira e dianteira do carro) e partiram para o Rio a fim de "salvar" a apresentadora Xuxa e uma de suas paquitas. A operação terminou com a morte de um policial militar, perseguição pelas ruas, morte de um dos rapazes e internamente do outro em estado grave. O jornal deu a notícia na edição de quinta-feira sem o menor destaque, como sendo outra tentativa de sequestro, fato normal de terrorismo civil abortado. A Folha conseguiu recuperar melhor o caso na edição de sexta-feira. Na véspera, perdeu para o "Globo, "Estado", e "Jornal da Tarde". Mesmo assim continua tratando o assunto como notícia policial corriqueira. O episódio vai além. Sugere muito mais pelas pessoas envolvidas, pela tralha mortífera apresentada e pelas circunstâncias em que ocorreu. Pior: nem Xuxa e nem a paquita ainda foram salvas!

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Mas a semana terminou com sobra de elogios. A revista "Imprensa" circulou com pesquisa encomendada pelo Vox Populi, um atestado de moralidade da Folha. Comparada aos outros três grandes jornais ("Estado", "Globo" e "JB"), ela ganhou em sete dos dez requisitos: "Maior credibilidade"; "Mais imparcial, isento"; "Mais claro"; "Melhor apresentação gráfica"; "Mais democrático e mais aberto a opiniões divergentes"; "Mais combativo e oposicionista". A Folha perdeu para o "Estado" apenas nos itens "Mais abrangente" e "Melhor caderno de classificados". E empatou, também com o "Estado", na última indicação: "Melhor no assunto que interessa". De resto, levou o roldão "JB" e "Globo", este último apontado como o de menos credibilidade, 7 pontos contra 30,9 pontos para a Folha. Título na revista: "Folha massacra a concorrência",


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