Folha de S. Paulo


Especialidade e engajamento

O jornalista Fernando Gabeira, 50 anos, correspondente em Berlim, foi punido pela Folha porque discursou em protesto de ecologistas durante a cerimônia de abertura do Dia Mundial do Meio Ambiente, na Suécia, da qual participava o presidente Fernando Collor. Gabeira estava a serviço. Ele foi afastado da cobertura jornalística da viagem e retornou para sua base, na Alemanha.

O problema aconteceu quarta-feira passada, pela manhã, no protesto contra as políticas ambientalistas oficiais e contra a "militarização" da política ambiental no Brasil. A manifestação foi feita por militares ecologistas do lado de fora City Hall, a Prefeitura de Estocolmo, onde se dava a abertura do evento patrocinado pela ONU e com a participação de Collor.

Durante o protesto, Gabeira foi reconhecido por militantes ambientalistas (ele morou por oito anos na Suécia, quando esteve exilado) e eles gritaram seu nome. Os manifestantes em torno de 150 pessoas, metade brasileiros metade suecos, levavam estandarte verde-amarelo onde estava escrito "Manifesto Brasileiro".

A Folha publicou na quinta-feira o despacho de Gabeira sobre as atividades do dia no qual relata o protesto e a cerimônia da qual participou à noite o presidente ("Collor recebe na Suécia a tocha simbólica da conferência Eco-92"), um texto sobre o encontro de Collor com Gorbatchev e outro, mais pessoal, onde conta o acontecido com ele próprio. Reproduzo o último:

"Ao me reconhecerem entre os repórteres, os manifestantes ambientalistas começaram a grifar meu nome. Eles não sabiam que sou correspondente em Berlim e que vivo fora do Brasil. Subi em um caixote e expliquei isso a eles, dizendo que levaria a imagem de sua demonstração como parte de meu trabalho. Afirmei, a título pessoal, que o fato de o presidente Collor ter visitado, na véspera da viagem, o Centro Experimental de Aramar (SP), onde se enriquece urânio para um submarino nuclear, parecia contraditório com seu discurso ecológico e pacifista na Suécia".

No mesmo dia, o jornal "O Globo" publicava reportagem, "De rabo preso com o protesto", na qual afirmava que o jornalista da Folha havia aderido ao "protesto anti-Collor". Em nota da redação, na sexta-feira, a Folha explicou aos leitores por quais razões afastara o jornalista da cobertura. Dizia que Gabeira tinha cometido erro ao expressar opiniões pessoais, em público, a respeito dos fatos que estava cobrindo. Com isso, "o jornalista permitiu que se lançasse suspeita em torno de isenção de seu trabalho -de resto, irrepreensível- durante a visita".

A nota aproveitava para alertar sobre a distorção operada pelo pela "Globo", induzindo "seus eventuais leitores à crença de que a Folha teria rabo preso com o ato anti-Collor". Acrescentava: "Rabo preso, como sabe qualquer pessoa razoavelmente informada, tem é o jornal "O Globo", publicação oficiosa não apenas do governo Collor mas de sucessivas administrações federais há muita décadas."

A distorção, realmente, está longe daquilo que se pode chamar o jornalismo. Detalhe pequeno de um episódio bastante didático em termos de ética de imprensa.

Gabeira acabou punido com a "pena" mínima possível no caso. A "pena" máxima seria a demissão. Por mais que a objetividade jornalística seja uma grande bobagem, aproximar-se dela, tentar ser objetivo, é preciso um mínimo de distanciamento em relação aos fatos com os quais se trabalha. O simples fato de ser partícipe de um evento que estava cobrindo profissionalmente permite - como resumiu acertadamente este jornal - que se lançasse suspeita em torno da isenção de seu trabalho.

O próprio Gabeira reconhece isso. "Minha visão coincide com a da "Folha", me disse, por telefone. Quando solicitado pelos manifestantes, Gabeira diz que tinha apenas duas soluções: ir lá falar com eles ou virar as costas e continuar trabalhando normalmente. Optou pela primeira, a "emocional". Em virtude de sua história, de sua militância. "Para não romper abruptamente com o passado", conta. Ainda mais, enfatiza, a mídia brasileira deixara de fazer qualquer relação entre a visita de Collor a Iperó, a cidade no interior de São Paulo onde fica o centro nuclear de Aramar, e a viagem ambiental á Suécia.

Gabeira considera acertado um jornalista não se envolver diretamente com os fatos com os quais trabalha. Optou consciente pela decisão a qual considerava que lhe traria "menor desgaste". Mesmo que isso significasse o seu desligamento. Diz existirem "momentos na vida que transcendem a condição profissional". Considera, no entanto, que sua posição não invalida a do jornal: Ele também sugeria ao jornal que o desligasse da cobertura, "Fiquei plenamente satisfeito", resume. "Às vezes acontece isso na vida e a gente tem de enfrentar com tranquilidade."

A Folha realmente acertou ao desligar o jornalista do restante da cobertura da viagem. Veja que não se está falando aqui de mera opinião, de interpretação ou de análise. Numa imagem exagerada, mas necessária para iluminar o problema, seria o mesmo que um jornalista destacado para cobrir flagrante de assalto se unisse aos assaltantes. Gabeira deu mais do que opinião, juntou-se aos manifestantes.

E, finalmente, uma pergunta ética se impões:

Um jornal deve destacar militante (ou ex-militante) para cobrir fatos com os quais ele tem relação de engajamento que ultrapassa a da especialidade?

A resposta depende da análise da capacidade de distanciamento de cada profissional. No entanto, o distanciamento crítico é fator primeiro em qualquer atividade jornalística. E o próprio Gabeira, ao reconhecer o acerto de seu afastamento da cobertura da viagem presidencial, corrobora essa assertiva.


Endereço da página: