Folha de S. Paulo


Um futuro a inventar

Em debate realizado na semana retrasada no Sesc, em Santos, discutiu-se as perspectivas dos meios de comunicação para o futuro. Três grandes temas se desenham nesse horizonte.

O primeiro deles, econômico, aponta para uma concentração do poder da mídia nas mãos de poucos, muito poucos. Na Europa, são 14 os grandes grupos controladores da maioria da mídia. Há previsões de que serão apenas oito com a chegada do grande mercado, em 1993. Nos Estados unidos eram 50 as grandes corporações de comunicação em 1983, hoje estão reduzidas a 23. No Brasil, apenas nove grupos - todos familiares - detêm o controle de quase 90% da informação circulante.

O segundo tema se refere aos novos materiais que servirão de suporte para a informação. Se a escrita permanecerá como eficiente meio de comunicação - presume-se que a longo prazo -, nada indica que o papel de imprensa, por exemplo, conseguirá sobreviver muito tempo como receptáculo da informação impressa. O desenvolvimento das comunicações - vídeo-textos, aparelhos de televisão "inteligentes" e de alta-definição, fac-símiles acoplados aos microcomputadores... - poderá transformar os atuais jornais e revistas em produtos diferenciados desse que você tem hoje nas mãos.

O terceiro tema é o da relação do cidadão com os meios de comunicação. Tanto aquele que apenas o frui como fonte de informação quanto o que é a sua própria fonte. Um dos maiores desafios ainda não vencidos pelos meios de comunicação é o do direito de resposta. Nem as democracias do primeiro mundo conseguiram encará-lo de frente para encaminhar com maturidade a sua resolução.

O assunto tem a ver com a própria liberdade de imprensa. No dizer de Jacques Derrida, 60 anos (o filósofo da "desconstrução", uma das poucas cabeças bem pensantes entre os filósofos vivos), a liberdade de imprensa é o bem mais precioso da democracia. Derrida vai adiante, afirmando que esta liberdade fundamental deve ser inventada a cada dia. E a democracia idem.

Numa entrevista dada ao primeiro número de um suplemento especial do "Le Monde" (sobre a revolução francesa), em 1990, e que aparece agora na sua versão integral na forma de livro ("L'Autre Cap", Ed. Minuit, 124 págs.). Derrida apresenta o problema e o relaciona com o da concentração na mídia de maneira bastante lúcida. Escute-o:

"É preciso também lutar contra os efeitos da 'censura' em todo o seu sentido, contra uma 'nova censura', se posso dizer, que ameaça as sociedades liberais, contra as acumulações, as concentrações, os monopólios, em suma, todos os fenômenos quantitativos que podem marginalizar ou reduzir ao silêncio aquilo que não sem mede pelos seus parâmetros. Nem se pode mais defender simplesmente a pluralidade, a dispersão, o fracionamento, a mobilidade dos filtradores ou dos assuntos dos quais eles dispõem. Porque forças sócio-econômicas poderiam então abusar dessa marginalização e dessa falta de um fórum geral. (...) A 'nova censura' é a força de sua astúcia, combina concentração e fracionamento, acumulação e privatização. Ela despolitiza."

Ele entra, depois, no tema do direito de resposta: "A França é um dos raros países que reconhecem o direito de retificação (da parte dos poderes públicos ao qual ele se reserva) e, mais amplamente, o direito de resposta. É um direito fundamental. Mas só se pode exercê-lo (em direito estrito, não falo da moral ou da política) em condições muito restritas. O erro ou a falsificação, a omissão, a violência de interpretação, a simplificação abusiva, a retórica da insinuação, e também o insulto, permanecem frequentemente sem resposta pública e imediata no rádio, na televisão ou nos jornais. E, claro, nos livros. Mesmo quando as dificuldades jurídicas ou técnicas não desencorajam de antemão, uma resposta é em geral neutralizada pelo seu lugar, a edição e a demora."

Para Derrida, enquanto o direito de resposta não existir em toda sua extensão e efetividade, a democracia continuará limitada. O problema não está restrito à França. A Inglaterra, mesmo com um moderno código de ética confeccionado pelas empresas de comunicação (o mesmo que obrigou todos os jornais a adotarem o ombudsman), ainda não resolveu o problema da edição e da imediaticidade do direito de resposta.

No Brasil, para ficar num exemplo banal mas revelador como a falta de aplicação sistemática desse direito ajuda a destruir reputação, basta ver o que os jornais aprontaram, semana retrasada, com o bispo Edir Macedo, chefe da Igreja universal e pretendente a dono da TV Record. Um simples erro do Detran carioca na emissão de documentos de um BMW importado levou o nome do bispo para as primeiras páginas dos principais jornais. Tinha sido, conforme se apregoou, visitado pela polícia sob a suspeita de contrabando de automóveis. No final da semana "Veja" contou que por trás de tudo estaria "ordem direta de Collor para caçar e cassar o bispo, por suspeitar que Edir Macedo seja o testa-de-ferro de Quércia".

No caso, o bispo tem amplo acesso aos meios de comunicação. Nem por isso conseguiu mostrar, no mesmo dia em que a denúncia veio a público, sua versão dos fatos, a de que está sendo "perseguido" - com exceção desta Folha que o ouviu de imediato.

Se com o bispo da Record as denúncias apareceram nos jornais em primeira página e com muito mais destaque do que a sua versão dos fatos imaginem o que acontece todo o dia com o cidadão comum. Aquele suspeito de algum crime, aquele perseguido por essa ou aquela razão (política ou pessoal), aquela vítima desconhecida, todas as dezenas de pessoas cuja presença passageira (em função do crime, suposto ou não, uma atividade diferenciada, uma denúncia honesta ou desonesta) dá corpo e substância para os noticiários?

Não é só no Brasil, a mídia julga e condena antes que a própria Justiça dê um veredicto. Esses cidadãos não têm espaço para a defesa, não têm o direito de mostrar a sua verdade. Quando o têm, quase sempre por favor, o estrago já foi feito por um pequeno título de primeira página ou manchete de telejornal. A versão da mídia já terá produzido efeitos cuja perversidade se multiplica "n" vezes se comprada com as pequeninas notas de retificação ou reportagens que aparecem para recontar um caso.

Tomando emprestado as ideias de Derrida, de fato, o futuro não será democrático se as democracias não resolverem com rapidez a dissimetria entre o poder da mídia e a impotência das vítimas dessa mídia.


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