Folha de S. Paulo


Varejão de problemas

A Folha é o jornal que mais admite erros no Brasil. Quando assumi a função de advogado do leitor, em Setembro de 1989, ela corrigia em torno de 12 informações por mês. Só em maio passado foram retificadas 160 informações, um recorde. Nem por isso todos os equívocos foram devidamente retificados. Não existe problema com refutações de erros objetivamente comprováveis, mas quando há uma pontinha de subjetividade (por menor que seja) a coisa complica.

O Ombudsman recebe as queixas, passa todas para a Redação e aguarda as providências ou respostas. Não tem poder de obrigar o jornal a fazer o que não quer. O defensor do leitor sugere saídas. O jornal acata ou não. No limite, existe esta coluna para aparar arestas e mostrar quando o defensor discorda de algumas das decisões tomadas. Os assuntos de hoje se referem a casos cujas resoluções propostas me pareceram inadequadas. Vamos a eles.

O OUTRO LADO

No dia 3 de Maio, o caderno Cotidiano publicou reportagem na qual o artista plástico Marcus Marcelo Germano acusava dois policiais militares de Boíçucanga (litoral de SP) de espancamento e tentativa de violação sexual. A reportagem - assinada por Claudio Julio Tognolli - ouvia a vítima e o delegado - corregedor da Polícia Civil. Este último prometia apurar responsabilidades.

Um policial Militar de Boiçucanga ligou para reclamar que nenhum dos dois policiais acusados (somente os prenomes apareciam no texto) fora ouvido pelo jornal. Disse que eles não bateram no artista. Ao contrário, encontraram-no nu na estrada e livraram-no de um possível linchamento.

Passei a reclamação, por escrito, á Redação. Recebi em resposta relatório do repórter afirmando ter ouvido o delegado-corregedor, " que diz na reportagem que não há provas contra ninguém mas apenas o depoimento do acusado". O repórter incluía xerox de atestado médico, segundo o qual o artista agredido apresentava hematoma no antebraço esquerdo, escoriações superficiais e vermelhidão. Esse documento é definido pelo repórter como o "resultado da Polícia que 'salvou' o rapaz do linchamento". Acompanhava adendo das jornalista Suzana Singer, editora interina de Cidades: "Não acho que seja o caso de voltarmos ao assunto".

Devolvi o dossiê considerando as respostas não satisfatórias: "Conforme manda o 'Manual Geral da Redação', o jornal deve ouvir os vários lados envolvidos num fato. Ouvir corregedor não é ouvir um lado, mas o juiz do problema. A reportagem não seguiu o 'Manual' e não ouviu nenhum policial acusado pelo artista". Sugeria que ouvissem os policiais e levassem suas versões ao leitor. Era o dia 14 de Maio, 11 depois da notícia. No dia 22, o dossiê retornou com outro despacho da jornalista Singer: "O delegado-corregedor é a 'polícia da polícia'. Cabe a ele julgar casos como esse. A rigor, ele pode ser considerado juiz, mas em geral, defende a polícia. Sugiro publicarmos a carta no Painel (do leitor). Não tem qualquer sentido jornalístico voltar ao caso".

O que não tem qualquer sentido é a resposta. A jornalista leu mal o dossiê e nem percebeu inexistir "carta" mas telefonema ao ombudsman. Não se faz jornal para opinar se o delegado-corregedor defende ou não a polícia. Faz-se jornal, no mínimo, para publicar notícia correta e completa. E na notícia em questão faltou a versão dos acusados.

INCHAÇO NA CMTC

Título na primeira página, dia 6 de Maio: "CMTC incha e causa nova tensão no PT". Conforme o texto de capa, o total de funcionários da CMTC cresceu em relação ao número de ônibus em operação desde de julho de 1990. Em Abril, havia 11,33 funcionários para cada veículo, contra 9,43 oito meses atrás. Titulo interno registrava: "CMTC tem 11 empregados por ônibus em serviço". O texto anotava". "A empresa continua inchada, apesar da redução de cerca de 2 mil funcionários (cerca de 7% do quadro total) na gestão Sandroni".

Paulo Sandroni, presidente da CMTC, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos ( de São Paulo), telefonou para reclamar, especificamente, do titulo e do texto da primeira página. O título e do texto da primeira página. O título levaria á interpretação equivocada de que a CMTC "inchou" na sua gestão. No entanto, conforme a própria reportagem, a companhia "diminuiu" em número de funcionários. Por "fatores conjunturais", explicou, a quantidade de ônibus em funcionamento realmente diminuiu, mas houve também redução de quase dois mil funcionários e a chamada de capa omitia esse dado.

Reclamação encaminhada, recebo resposta do editor-executivo, Matinas Suzuki Jr., na qual ele concorda com minha ponderações ("o texto de capa potencializa um lado da questão e leva realmente á interpretação equivocada", eu escrevera), mas acredita "que não houve erro também". Propunha que se solicitasse carta ao reclamante para publicação no Painel do Leitor.

Devolvi o dossiê, discordando da proposta. O presidente da CMTC tinha procurado o canal normal para esse tipo de problema, o ombudsman, Cabia ao jornal um esclarecimento. A resposta final da secretária de Redação Alon Feuerwerker, considerava correio dizer que a empresa "inchou", pois cresceu a relação empregado/ônibus. Ele mantinha a proposta de publicação de carta no Painel do Leitor.

Discordo. O Painel do Leitor está se tornando indevidamente lugar do desafogo de questões que podem e devem ser resolvidas de maneira mais correta com retificação ou nova reportagem. Como este é o jornal que mais dá direito de resposta no Brasil, acabou ficando fácil desaguar as reclamações no Painel do Leitor - o que acaba tomando o espaço das opiniões dos leitores. No caso específico, houve omissão de informação relevante. Era fundamental o próprio jornal esclarecer tudo.

PALAVRA NOCAUTEADA

Nota no Painel (pág 1-4) do dia 4 de Maio afirmou que Ulysses Guimarães escolheu o boxeador George Foreman para inspirar seu futuro político. E complementava: "Ele só espera ter mais sorte que o peso-pesado que na ultima luta perdeu o título mundial para Evander Holyfield.

Um leitor telefonou para contestar: Foreman não "perdeu" o título porque não o detinha. Holyfield continuou mantendo o título que era seu. Pedido de retificação passado á Redação, recebo do então editor do Painel, jornalista Mauro Lopes, a seguinte peroração: "O verbo perder não tem apenas o significado de ser privado de algo que se possuía. Segundo o Aurélio, o verbo perder tem 32 significados. Entre eles: o ato ou fato de deixar de ganhar, malograr-se e ser vencido. Creio que o texto da nota em questão encaixa-se em qualquer um desses três casos".

A "defesa" vinha com a concordância dos secretários de redação Leão Serva e Alon Feuerwerker e do editor-executivo Matinas Suzuki Jr. : não cabia retificação. O dossiê retornou com minha discordância. Despacho final do secretário Feuerwerker. "No caso, acho que Foreman perdeu o título, pois este estava em disputa. Se ele deixou de ganhar então perdeu".

É cristalino que Foreman perdeu a luta e não o titulo, que nem lhe pertencia. Não era mais fácil retificar o equívoco do que gasta tempo de importantes executivos do jornal em joguinho de semântica?

IDÉIA FIXA

Já que é dia de lavar a roupa mal lavada pela Redação lembro que o jornal voltou a noticiar, na terça-feira, dia 14 de maio, em manchete na quinta página do caderno Mundo: "Ministros preveem adiantamento da união europeia". A reportagem era acompanhada de análise: " Ainda possível o fim das barreiras ".

É preciso ler com precaução o noticiário sobre a unificação europeia neste jornal. A editora de Exterior confunde a união europeia neste jornal. A editoria de Exterior confunde a união europeia com as fases desse processo e insiste um mudar a realidade. Não há adiantamento algum da união europeia: ela começa dia primeiro de janeiro de 1993 com o fim das barreiras alfandegárias, conforme o previsto. O chato é que quem conhece o assunto ri e debocha do jornal. Quem não conhece, se desinforma.

SEMÂNTICA DA GREVE

Para demonstrar que os problemas retóricos não estão apensas nas relações entre a Redação e o Ombudsman, reproduzo a manchete do jornal na quinta-feira retrasada: "Fracassa tentativa de greve geral".

Ora bolas - conforme comentário do leitor Egberto Maia Lúcio-, a tentativa de greve existiu. O que fracassou foi a greve.


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