Folha de S. Paulo


Se depender da mídia, Zélia vira santa

Os acertos e desacertos dos meios de comunicação de massa no Brasil na cobertura da queda da ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, deram o tempero da semana, A saber:

Ninguém destacou a viagem ás pressas do embaixador Marcílio Marques Moreira de Washington, ao Brasil. Nem rádio, nem jornal, nem revista, nem emissora de televisão. Tradução: imprensa mal informada.

Especulava-se, e muito sobre o desgaste da ministra Zélia no seu confronto com Egberto Baptista, secretário de Desenvolvimento Regional. Falou-se na Folha sobre a fritura promovida por Cláudio Humberto Rosa e Silva, o porta-voz de Collor, a voz do dono. A revista "Veja" antecipou na semana passada lances conhecidos como a gota d´agua: O problema Egberto e a ressurreição do "espectro" Bernardo Cabral. A reportagem de duas páginas se chamava "Zélia contra a parede". Mas terminava assim: "Durante a negociação da dívida, ela não sai. Depois de fechado o acordo, só fica se controlar a inflação".

Na quarta-feira, dia da queda, a Folha deu manchete nada exata: "Zélia desafia FMI a arrochar mais". Este enunciado, equivocado, passava idéia de dureza da ministra (a mesma idéia que ajuda agora a canoniza-la). Era preciso ler o texto para entender a notícia. A então ministra desafiava o FMI a provar a possibilidade do governo promover um arrocho fiscal e monetário maior. Ela não o desafiava para arrochar coisa alguma.

No anúncio da queda, em manchete, os jornais se desentenderam na "interpretação". Na Folha, a ministra "caiu"". Em "O Estado de S. Paulo" ela "saiu". Em "O Globo" ela foi "demitida" pelo presidente Collor, No "Jornal do Brasil", foi substituída" por Marcílio. Afinal, ela foi demitida ou demitiu-se?

A televisão botou de novo os jornais debaixo do braço. Os primeiros clichês dos quatro grandes jornais trouxeram a notícia da queda e o nome do ministro substituto. Mas os jornalões optaram por não atrasar muito seus fechamentos. Ofereceram um produto pífio. Eleitor de segunda classe. Merece o melhor jornal dentro do possível. Em dia excepcionais não adianta fechar correndo a primeira edição e caprichar em segundos ou terceiros clichês. Quem lê jornal quer muito mais do que a notícia bruta. Quer saber porque, quem mais foi arrastado na queda do ministro, o que fez e o que deixou de fazer o ministro que sai -idem para o que entra. Quer também análise, detalhes, muitos detalhes.

Faltaram coisas fundamentais no primeiro clichês da Folha. Todas possíveis de produção em tempo hábil. O "jornal da Tarde" (que não é vespertino) conseguiu explicar muita coisa. Mas faltou na Folha:

1. Cronograma das colisões de Zélia com os próximos do presidente. Gente como Pedro Paulo Leoni Ramos, secretário de Assuntos Estratégicos: Cláudio Humberto Rosa e Silva, porta-voz; Leopoldo Collor, irmão; Egberto Baptista...

2. Perfil minucioso de Egberto Baptista, o dito pivô da queda. O leitor merecia saber (ou ser lembrado) quais serviços Egberto prestou ao candidato Collor. Um deles: "inventou" Mirian Cordeiro, a ex-namorada de Lula, então candidato do PT á Presidência. Ela foi á televisão contar que Lula queria fazê-la abortar a filha que depois tiveram,

3. Texto didático sobre o embate Zélia x Egberto explicando o que é a Zona Franca de Manaus e porque eles brigaram.

4. A reconstituição detalhada do romance de Zélia e Cabral.

5. Dizer quais ministros continuavam na frigideira do Planalto, mas em fogo brando: Antônio Rogério Magri e Margarida Procópio.

Na sequência, na edição de sexta-feira, quem melhor informou sobre a queda, bastidores, detalhes picantes foi o "JB". Exemplos:

1. Zélia acha Marcílio o representante do "liberalismo selvagem".

2. Zélia queria como seu substituído Antônio Kandir ou Eduardo Teixeira.

3. O grupo de Zélia (a equipe econômica) teria feito um "pacto" segundo o qual todos cairiam fora se nenhum deles a substituísse.

4. Zélia está "ressentida" com Collor.

Na sexta- feira dois jornais não se entenderam com a "mineirice" adquirida, e aprimorada pela diplomacia, de Marcílio anuncia o fim da recessão", dizia o "Globo" em manchete. "Marcílio mantém o aperto da moeda", manchetava a Folha. A rigor, o novo ministro disse tudo isso mas também não o disse. Sobre a recessão, por exemplo, o verbo mais certo seria "atenuar" (usado pelo "JB"). Sobre o "aperto", o ministro disse não haver "condições de afrouxamento" no caixa do governo e na quantidade de dinheiro em circulação. Mas disse ainda não existir jeito de pedir novos sacrifícios. Ou seja, enrolou todos e cada um interpretou como quis.

O importante: apesar de todas as gotas d´água apontadas, não estão suficientemente esclarecidas as razões da queda. Dizer que Zélia se incompatibilizou com os amigos de Collor não é o suficiente para explicar tudo. Tem razão Janio de Freitas (na sexta-feira) ao sugerir que em Brasília há "mais armadilhas do que no Pantanal e mais nuvens negras do que no chuvoso céu carioca ", A imprensa brasileira ainda deve explicações aprofundadas aos seus leitores sobre esta queda.

E mais: não demora muito canonizam a Zélia. Toda mídia se condoeu com a saída da mulher-ministra debulhando lágrimas. O "Globo" trouxe foto (excelente, por sinal) de Zélia com os olhos e nariz vermelhos. E a oposição esqueceu o confisco das poupanças, das contas correntes e do dinheiro no over. A rigor, a ministra saiu em boa hora: inflação baixa e déficit pública controlado. Só que ninguém explicou em detalhes, como tudo isso é artificial.

E por falar em cruzados confiscados, nem o governo esclareceu e nem a mídia cobrou - definitivamente como será a tal devolução a partir de setembro. No entanto, jornais e emissoras de TV se apressaram em papaguear que Marcílio promete devolver tudo. Devolver o quê? Essas 12 parcelas do dinheiro retido vão ter correção mês a mês durante a devolução? Repito, mês a mês? Para ficar claro, digamos que o governo tenha para lhe devolver 120 mil serão divididos por doze e você vai receber 10 mil cruzeiros por mês? Isso, sem inflação, é uma coisa. Com inflação - mesmo pequena- é quase nada. No final dos doze meses esses 10 mil não valerão um tostão. Já que deixou passar o confisco sem reagir. Já que acompanha os processos na Justiça contra o dinheiro retido como se fosse agenda de campeonato de dominó, não era o caso da mídia tomar vergonha e cobrar definição cabal a respeito?

PS - A Folha promete para a edição de hoje revelações sobre a queda de Zélia. Os outros jornais e as revistas semanais também devem ter preparado material sobre o episódio. No domingo que vem, vamos analisar esta batalha da mídia.


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