Folha de S. Paulo


Sobre mentiras e perseguições

Você acompanhou na semana passada mais um embate Collor-Folha. O jornal noticiou terça-feira o depoimento do porta-voz da Presidência da República, Cláudio Humberto Rosa e Silva, perante juíza em Brasília a respeito do processo movido por causas das reportagens sobre publicidade governamental sem licitação. No dia seguinte apareceu um anúncio sem assinatura, nos grandes jornais, acusando a Folha de mentirosa. Esta reagiu, na quinta-feira, com noticiário sobre o tal anúncio anônimo e creditando-o ao governo via intermediação de agência de Brasília, a SR Publicidade e Promoções. O anuncio sustentava que a Folha teria distorcido o noticiário sobre o depoimento do porta-voz de Collor. A Folha mostrou claramente não ter sido a única nem a primeira a falar das especulações que corriam nos bastidores do governo sobre as contratações. O "Jornal do Brasil" o fizera com um dia de antecedência e não sofreu processo. Conforme o "JB", ipsis verbis para quem não leu: "Outro forte comentário diz respeito á cobrança por parte das agências que fizeram a campanha presidencial de uma taxa extra paga pelo governo, além da remuneração normal de 20% sobre a venda da veiculação e 15% sobre o custo de produção da campanha. Esse dinheiro seria uma compensação adicional: as agências trabalharam de graça na campanha eleitoral do ano passado."

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Isso mostra claramente a vontade de perseguir a Folha num assunto onde o governo - o primeiro a falar em moralização - foi o primeiro a dispensar licitações para fazer publicidade. Outro detalhe inusitado apareceu na defesa do jornalista e empresário Ronaldo Junqueira (o "R" da "SR" publicada como matéria paga nos grandes jornais do país e reproduzida editorialmente nesta Folha sexta-feira. Ronaldo esperneia, mas não nega que a agência da qual foi sócio-fundador intermediou a publicidade anônima em defesa do governo. Alguns leitores ainda acham que a Folha está sendo exagerada nesse embate. Tenho discordado deles em cartas e telefonemas. O governo um dia invadiu a Folha, depois processou quatro jornalistas da casa por causa das reportagens cobrando licitações, sonegou informações...Quem confisca dinheiro alheio, invade e processa jornal injustamente, pode um dia invadir o Congresso, perseguir cidadãos por causa de suas ideias, fechar jornais, rádios e emissoras de televisão. Um jornal não pode se calar contra o autoritarismo, qualquer esboço de autoritarismo.

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Depois da reforma de fevereiro, poucas vezes a Folha conseguiu uma edição noticiosa, compactada e crítica como a de quinta-feira. Das notícias importantes do dia, nada faltou. O diferencial em relação aos concorrentes estava na entrevista com o assaltante de taxista espancado em Porto Velho e a revelação do nome do assassino de Laura Palmer. O caderno Brasil estava com seu conteúdo muito bem distribuído, começou a mostrar sua cara definitiva. Dinheiro conseguiu dividir fraternalmente informações de economia (BNH, cartões de crédito com validade externa...) com as de negócios, do exterior inclusive. Mundo, apesar da manchete de capa sobre o caça-fraudes ser um pouco esotérica ("Nova Era mantém velhos jogos de magia"), balanceou bem "feature" e noticiário internacional. Cotidiano teve sensibilidade para eleger o assunto principal o mais preocupante para pais e alunos naquele dia, a greve dos professores particulares. Esporte desvendou o mistério da sexta marcha de Ayrton Senna em Interlagos. Por fim, a seção Atmosfera não só mudou a confusa escala de cores de temperatura no país como voltou a publicar a foto do satélite - uma das mais insistentes reinvindicações de leitores até então. Alie-se à boa qualidade da edição noticiosa o tom crítico da manchete: "Governo chantageia quem sobe salário".

*Estarei fora por uma semana. Começa hoje em Jacksonville (no norte da Flórida, nos Estados Unidos) mais um encontro anual dos ombudsmen de imprensa. Essas conferências anuais são promovidas pela ONO (Organization of News Ombudsmen), a entidade internacional que congrega os ombudsmen de imprensa. Ela tem sede em Sacramento, na Califórnia, e é mantida pelos jornais que adotaram o programa de ombudsman, como a Folha - por enquanto o único da América Latina. Na reunião, que vai até quarta-feira, serão discutidos assuntos ligados ao jornalismo e à ética de imprensa. Os itens da pauta incluem palestras e debates sobre a próxima "geração" dos códigos de ética; os problemas financeiros dos diários americanos (muitos estão raspando o tacho); fotografias polêmicas que provocam fortes reações entre os leitores; o humor em jornal que, a título de não ferir suscetibilidades, estaria tornando os diários mais chatos...Aguarda-se também o relato sobre a liberdade de imprensa na Grã-Bretanha - onde todos os grandes jornais adotaram ombudsman. Em função dessa viagem, não haverá atendimento telefônico aos leitores durante a semana. Mas quem quiser, pode deixar recados no (011) 874-2896.

NÃO ADIANTA AVISAR
O destaque da Folha na semana passada fica por conta da obsessão com a série de tevê "Twin Peaks" (picos gêmeos) de David Lynch. Ela publicou reportagem de apresentação, Marcelo Coelho comentou, o repórter Claudio Julio Tognolli detectou a "lynchmania" em reunião em Alphaville e, na quinta-feira, o auge: a Ilustrada revelou quem matou Laura Palmer. Teve o cuidado de avisar: "Não leia o texto se não quiser saber o mistério", conforme subtítulo na capa do caderno e chamada semelhante na primeira página - coisa que eu até elogiei em crítica interna.

Não adiantou prevenir. Leitores reagiram entre desapontados e indignados ante a possibilidade de saber de antemão aquilo que todos nos Estados Unidos já sabem: quem matou Laura Palmer.

Sérgio Rizzo, de São Paulo, resistiu à leitura. Inútil: "Eu não li mas as pessoas no meu trabalho estavam discutindo o assunto e acabei sabendo quem era" - reclamou. Uma dentista de São João da Boa Vista (SP) que pediu para não ter o nome citado, acha que o jornal não tem "esse" direito. Parece que vocês querem provocar a ira do leitor e testar seu limite de resistência!" Ela acabou me contando o fim do filme "O Poderoso Chefão" - que eu ainda não vi. Um médico de São Paulo, que também pediu para não ser identificado, considera a atitude menos jornalística do que estraga prazer do leitor: "um desserviço". Ele não quis ler a Ilustrada mas acabou vendo a manchete no "Notícias Populares" onde aparecia com todas as letras o nome do assassino. Paulo Lima, administrador de empresas em São Paulo se disse "indignado" e considerou o aviso para não ler um convite à leitura. Lamentou: "Nós vivemos sem ilusão e vocês tiraram qualquer possibilidade de diversão aos domingos, e elas são poucas!" José Pereira Primo, médio empresário do ramo metalúrgico em São Paulo, acha que a Folha "pisou na bola". Ele pensou que era brincadeira e encontrou logo no começo do texto o nome fatal: "Coisa de muito mau gosto". Marco Cherem, estudante de medicina em Belo Horizonte, não leu o subtítulo de alerta para a revelação e desabou no começo do texto. "O nome tá na primeira linha! Não dava para, ao menos, colocar mais embaixo?"


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