Folha de S. Paulo


A crise anunciada

O mercado de jornais diários está em crise em vários países do Primeiro Mundo. Dados recentes da Unesco revelam um pouco do tamanho do problema. Nos Estados Unidos, em 1975, existia, 281 exemplares para cada grupo de mil habitantes. Em 1986 essa relação caiu para 259 exemplares para mil habitantes. Na Grã-Bretanha, no mesmo período de onze anos, a queda foi de 429 para 421; na França, de 238 para 193; na Itália, de 117 para 99.

Entre os "sete grandes", contatou-se crescimento apenas no Japão, a relação aumentou de 546 exemplares para 566 (mas o país havia alcançado a marca recorde de 570 exemplares por mil habitantes em 1979). Na Alemanha (os dados se restringem à antiga Alemanha Ocidental), com 347 exemplares para cada mil habitantes, e no Canadá, com 255 exemplares, percebe-se estagnação na circulação.

Existem inúmeras explicações para esse fenômeno. Eles vão desde o aumento do interesse e da abrangência da televisão (que no Primeiro Mundo começa a viver a realidade da alta definição) até a segmentação do mercado com o pipocar de publicações especializadas, propagação das "news letters" ou da disseminação de produtos do tipo videotexto, troca de dados via computador, o "boom" do fac-símile e dos boletins via fax - uma profusão de engenhocas e papeis como suporte da palavra e da imagem. Há quem fale, ainda, principalmente nos Estados Unidos, da falta de credibilidade da imprensa escrita e de sua necessidade de maior independência em relação aos poderes econômicos e políticos.

Aqui, como sempre, as coisas são bem mais complicadas. A começar pelos números, indigentes.
Enquanto no Japão, mais da metade da população tem ao seu dispor um jornal por dia, no Brasil, a proporção é de apenas 48 exemplares para cada mil habitantes. No Chile, a relação é de 80 para mil, na Venezuela 164 para mil, na Guiana Francesa 79 para mil!

Os dados da Unesco sobre o Brasil apontam, no entanto, para um ligeiro crescimento na relação da tiragem dos jornais para cada grupo de mil habitantes. Enquanto, em 1975, no Brasil, a proporção era de 45 exemplares por mil, em 1986 houve um pulinho e três exemplares e a proporção passou para 48 exemplares por mil.

Esse número, porém, é contestado em estudo feito pela Universidade de São Paulo - sob coordenação do professor Jair Borin, da Escola de Comunicação e Artes - para o Ciespal, Centro Interamericano de Estudos Superiores de Periodismo da América Latina. Enquanto a Unesco estimava a circulação de jornais no Brasil em torno de oito milhões de exemplares em 1988, a estimativa do estudo de Borin é de 4,2 milhões no total de exemplares. Assim, considerando-se o estudo de Borin, a circulação total de jornais brasileiros estaria ainda menos do que a registrada em 1975 pela Unesco, 4,8 milhões de exemplares, e a proporção de exemplares para cada mil habitantes, hoje, seria menor do que 45.

Discrepância de dados à parte, uma coisa é certa: uma economia que se gabava de ser a oitava do mundo em um país que se pretende partícipe do Primeiro Mundo não cinsegue nem crise de imprensa à altura da dos grandes...Mais grave, enquanto a população economicamente ativa do Brasil cresceu 106% de 1970 a 1988 vê-se que a quantidade de jornais diários aumentou somente 62% - e para essa conta usei os números da Unesco, mais positivos.

Isso mostra, de forma cabal, a existência de um potencial de leitores não atingido e incapacidade do jornal diário conquistar o público possível. É evidente que alguns diários conseguiram aumentar consideravelmente sua circulação, mas o potencial é grande e até agora inatingível.

A crise é mais visível nos Estados Unidos com a sobrevivência de apenas um grande jornal, entre os sérios, por cidade. No Brasil, em Porto Alegre, o "Zero Hora" já ganhou a parada contra o "Correio do Povo". No Rio, em termos de circulação para ficar num único termo de comparação, o "Globo" está suplantando de longe o "Jornal do Brasil". Em São Paulo, a concorrência segue acirrada entre esta Folha e "O Estado de S.Paulo" (apesar de a Folha vender mais), mas só o trabalho dos jornalistas de ambos os matutinos dirá quem levará a melhor - se esta tendência de restar apenas um jornal sério em cada grande centro se verificar. (Em todo o caso, quem estará sendo prejudicado será sempre o leitor porque perder a oportunidade de escolha, de confrontamento de informações, ideia e opiniões).

Mas a crise na imprensa está aí, crise do jornal como suporte da informação impressa. E uma das coisas que pode apressá-la, em vez de superá-la, é a mania de distanciamento cultivada pelos jornais em relação ao cotidiano dos cidadãos. Essa mania, travestida de notícias da aparência dos fatos, pode afundar de vez o jornal diário.

Tome dois exemplos catados ao acaso na edição de sexta-feira da Folha. Primeiro, o caderno Dinheiro informava: "Bloqueio de NCz$ é inconstitucional, diz TRF". Segundo, a contracapa do Brasil convidava: "Veja como o governo virou 'sócio' da inflação".

As duas reportagens tinham muito a ver não apenas com o cotidiano do cidadão mas com algo muito mais precioso: o seu bolso. Valiam muito mais do que todas as notícias juntas da primeira página. Não estavam mal feitas nem erradas. Ao contrário, pecavam exatamente pela falta de entrosamento com o leitor, com a falta de serviço necessário para serem entendidas em toda a sua dimensão e ajudar cada leitor na difícil tarefa de levar adiante o seu dia. Faltavam-lhes sintonia com a vida.

A melhor notícia do dia (sobre o desbloqueio dos cruzados novos) mereceu, é verdade, um titulozinho acanhado na primeira página, "Bloqueio de NCz$ cai no TRF de SP". Era um enunciado mais ou menos cifrado, longe do centro da questão. Sabe-se de velho (e os jornais pouco noticiaram isso) que praticamente todas as pessoas jurídicas, principalmente as grandes empresas, liberaram todos os seus cruzados bloqueados. Quem os tem é o cidadão comum, aquele que guardou na poupança um dinheiro para dar dignidade à família em momento de necessidade, o desavisado que precisava manter um dinheiro na conta corrente ou no over para pagar dívida (casa própria, carro, cirurgia...), enfim, essa nossa classe média consumidora e mantedora dos jornais.

Muito bem. Na sexta-feira o jornal não trouxe uma linha sequer de serviço ao cidadão para explicar como ele poderia desbloquear seu dinheiro confiscado ilegalmente pelo governo (o tribunal considerou o bloqueio inconstitucional). Apesar de caber recurso por parte do governo, era necessário mostrar naquele dia que alguma coisa é possível fazer e como ela deve ser feita - se com advogado, por intermédio do Ministério Público, ações populares conjuntas, o diabo a quatro...Não bastava dar o furo de jornalismo. Era fundamental o serviço completo. Isso foi feito, em tempo, na edição de ontem (sábado). Os jornais têm essa vantagem, o que se perde num dia se recupera no outro - mas até quando o leitor vai esperar o outro dia?

No segundo caso, grande achado de pauta, a explicação de como o governo (no caso são os governos federal, estadual e municipal, era melhor explicitar) ganha com a inflação e às custas do contribuinte, faltou toda a didática requerida para tirar o assunto da macroeconomia e trazê-lo para o chão, ou seja, para o bolso do leitor. Batava mostrar, com exemplos reais (como o pagamento do IPTU), a maneira pela qual se indexa os impostos, corrigindo-os pela TR, enquanto os salários continuam congelados ou são corrigidos semestralmente. Tudo isso foi dito na reportagem, com clareza, mais exemplos, mais redundâncias, mais escândalos, porque é escandaloso o governo indexar a receita, congelar despesas e forçar empresas a congelarem seus preços ou se submeterem a um controle governamental.

Por último, e para dizer o de sempre: quanto mais os jornais se distanciarem dos problemas reais dos cidadãos, mais perderão. Na sexta-feira a Folha ouviu o galo cantar, só não soube muito bem onde. Podia ter feito melhor. Por mais anunciada que seja a crise, ninguém vai deixar de lado o jornal enquanto ele for gênero de primeira necessidade - espiritual e informativo que seja.

Retranca
A semana passada começou com um caso hilariante - menos para os jornais brasileiros.
* Título na primeira página da Folha de 2 de abril, terça-feira: "Cicciolina decide largar o mandato". Título interno: "Cicciolina renuncia a seu mandato no Parlamento".
* Título interno no "Estado", no mesmo dia: "Cicciolina renuncia e diz que quer evitar crise".
* Idem no "Globo": "Cicciolina resolve sair da cena política italiana".
* No "Jornal do Brasil", ibidem: "Cicciolina diz adeus".
* As declarações da pornô-deputada italiana foram dadas no dia primeiro de abril e publicadas um dia depois. No dia seguinte, 3 de abril, somente dois jornais retomaram o assunto
* O "Globo" informou em pequena nota que "um dia depois de ter renunciado à sua cadeira de deputada, a atriz Ilona Staller, Cicciolina, disse ontem em Roma que se sentia 'ressuscitada como parlamentar' ao ter seu nome mencionado pela imprensa mundial".
* A Folha deu à "suíte" seriedade de informação: "Cicciolina desiste de renunciar à política", conforme o enunciado do título. No texto, perguntava sem coragem de responder: "Uma brincadeira de primeiro de abril aos colegas deputados ou mais um golpe publicitário para levar de novo seu nome para as manchetes dos jornais?"
* No dia da publicação da notícia da renúncia, o correspondente em Milão - Marcos Augusto Gonçalves - alertou para a possibilidade de mais um golpe autopromocional da deputada, registre-se. Como deve ser registrado também o ceticismo com que Araújo Netto, correspondente do JB em Roma, atacou o tema: "A anunciada promessa foi recebida com desconfiança pelos parlamentares..."
* Mas uma coisa é certa: os quatro principais jornais do país noticiaram com seriedade a renúncia. Por isso, passado o susto e verificado que a deputada permanecia, não era mais simpático, e bem mais gozado, admitir que caíram no primeiro de abril de Cicciolina?
* Só para registro, veja como os dois principais jornais italianos deram a bomba (ambos em textos internos):
* O "Corriere dela Sera" teve o cuidado de conferir a data da carta-renúncia, primeiro de abril e perguntou: "Não será uma brincadeira?"
* O "La Repubblica" ironizou: "A um ano do fim de seu mandato parlamentar, e num dia 'particular' como o primeiro de abril, a honorável Cicciolina..."


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