Folha de S. Paulo


Preconceitos

O preconceito é um julgamento pessoal baseado em crença sem fundamento. É conceito ou opinião, formado de antemão, sem maior conhecimento dos fatos - como definem os dicionários. Na maioria das vezes ele se perpetua sem a menor consciência de seu usuário. No "Discurso de Método", Descartes afirma que a maior parte das opiniões da pessoa data da sua infância e provém da vontade e da educação de cada um - é deixado de admitir como verdadeiro aquilo que sempre foi apresentado enquanto tal que as ciências se tornarão possíveis.

O exercício da dúvida permanente, pulando para assuntos mais palpáveis, está na razão de ser do jornalismo. Duvidar de tudo pode ser bom caminho para o início de qualquer investigação jornalística. Ao deixar de duvidar, ao reproduzir - sem pensar - determinadas expressões, o jornalista perpetua, mesmo sem querer, o preconceito. A chuva e a greve de ônibus provocaram em São Paulo a terça-feira "negra", conforme manchete da página interna, neste jornal, na quarta-feira. Verbos como "judiar" ou "denegrir" têm uso comum sem que se pense de onde procedem. O primeiro vem de judeu, significa maltratar como antigamente se maltratava os judeus ("Aurélio"). O segundo quer dizer escurecer, tornar negro. E negro é a maneira como as pessoas da raça negra preferem ser tratadas.

As minorias são o alvo mais fácil do preconceito. "Judiar" não virou verbo de graça nem será à toa que "brasileirado" poderá significar algo semelhante a sucateado - e os brasileiros certamente reclamarão, cheios de razão. Desde a antiguidade que as minorias são espoliadas e massacradas pelos mais fortes. Não é de graça também, que as democracias tentam conviver com as minorias. Numas existe miscigenação, como no Brasil, e noutras criam-se barreiras de sociabilidade controladas, como nos Estados Unidos. E nem tudo isso é o suficiente para garantir razoável entendimento entre raças ou credos.

A mídia, antes de tudo, pode também ter função pedagógica. Quanto mais puder estraçalhar preconceitos, melhor. Estará promovendo a auto-reflexão permanente e ajudando o cidadão a promove-la. Não é porque alguém é "crente" que sua opinião deve ser desconsiderada. Não é porque um outro está trabalhando sentado em uma cadeira de rodas que está nela "confinado". Ninguém é "retardado" quando toma a decisão errada.

Toda essa peroração vem a propósito da capa do caderno Mundo da última quarta-feira. A manchete fala por si: "Cruzada antipreconceitos ameaça liberdade de expressão nos EUA". Para quem não leu, tratava-se de um texto relatando existir campanha em curso nos Estados Unidos para eliminar da mídia as palavras "negativas" (ou preconceituosas) e isso estaria sendo visto como perigoso "fascismo invertido". Ela tratava de um tal "Dicionário Caucionário de Termos e Frases" preparado num programa multicultural da Escola de Jornalismo do Missouri.

Pode ser considerado sensacionalismo barato o título do caderno. Ele exagera o repúdio das publicações neoliberais à campanha contra o preconceito. Mas atente, apenas uma única publicação neoliberal é apontada como exemplo, "The New Republic". No próprio texto, aquilo que a reação chamaria de fascismo, "a cruzada antipreconceitos", é dada como "imbecilidade", em todo caso, o texto não consegue dar ao leitor, com evidências, a dimensão dessa "ameaça" à liberdade de expressão comprada febrilmente pela Folha. Não se falou de movimento ordenado, da sua articulação, da repercussão junto ao público, das "vítimas", nada. E mais: só existe ameaça à liberdade de expressão quando o poder do estado (ou o poder da força bruta) faz carga com leis esdrúxulas, censura, insinuação ou armas.
A reportagem, assinada por Bernardo Carvalho, correspondente em Nova York, tem o mérito de detectar um movimento em curso nos Estados Unidos e uma reação de esboçando. No quadro de exemplos dos verbetes do "Dicionário Caucionário de Termos e Frases" (não seria melhor Dicionário Cauteloso de Termos e Frases"?) fala-se, com espanto, no verbo "judiar". O espanto vem com a colocação de três pontos de interrogação quando se fala que o "Dicionário" manda evitar o uso do verbo. Ora, comunicado recente da Secretaria de Redação da Folha orienta os jornalistas exatamente para o não uso desse verbo, exatamente por sai conotação preconceituosa.

Sobre o mesmo assunto, o "Manual Geral da Redação" da Folha é cristalino nos verbetes "minorias" e "preconceitos": "as minorias étnicas, raciais, religiosas, políticas ideológicas ou de qualquer outra espécie merecem da Folha um tratamento sem preconceitos". Ou: "a Folha não admite preconceitos nos textos que publica. Ninguém é qualificado por sua origem étnica, naturalidade, confissão religiosa, situação social, preferências sexuais, deficiências físicas ou mentais, exceto quando essa qualificação dor indispensável para tornar completa a informação que o texto veicula".

Que se faça uma campanha nos Estados Unidos para abolir da mídia as palavras preconceituosas é fato merecedor de registro. Quando determinadas publicações se levantem contra e até digam se tratar de uma ameaça à liberdade de imprensa, tudo bem. Mas daí, a reproduzir isso como se assim o fosse é coisa inconcebível. A edição exagerada da Folha e a reação das tais publicações neoliberais americanas são, simplesmente, preconceituosas. Trata-se de preconceito editorial contra o antipreconceito. Abaixo os preconceitos!

Retranca
Afora em editorias (principalmente na Folha, em "O Estado de S.Paulo" e no "Jornal da Tarde", o jornal que levantou o caso em reportagem), a imprensa tem estado a reboque do governo Collor no episódio do escândalo da Previdência e dos falsos "marajás". O governo, em vez de resolver o problema do gigantismo do Estado brasileiro, mais uma vez, detectada uma anomalia, decide punir de saída o contribuinte: cortou a pensão dos supostos "marajás". Fez o mesmo com os cidadãos na posse, ao confiscar poupanças. Fez o mesmo com a economia (e, por consequência, com os assalariados, pequenos e grandes empresários, industriais, banqueiros) ao congelar a produção por intermédio de mudanças sistemáticas nas regras do jogo econômico e financeiro. Somente uma imprensa crítica e independente poderá lançar luz sobre a questão das fraudes na Previdência. Não são os cidadãos que recebem a aposentadoria honesta os culpados - conforme quis fazer entender o governo.

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Mais de uma vez esta Folha foi injusta com a prefeita de São Paulo, Luiza Erundina. Em texto de capa, na quinta-feira, o jornal afirmou que ela saía de licença "alegando cansaço e necessidade de uma cirurgia de catarata". O título era assim: "Erundina deixa cargo em meio à crise". O verbo "alegar" tem conotação pejorativa. Significa, em geral, desculpa ou pretexto. Rigor, informava texto interno, Erundina desmarcara a operação uma vez, na segunda-feira passada, exatamente por causa da greve dos ônibus. Quanto à crise, querer cobrar responsabilidades da prefeita é tarefa do jornal - eu mesmo sinto que critiquei aqui o fato de a Folha ter-se esquecido de procurar Erundina no dia da grande inundação e ela estava no Rio. Mas apresentar notícia de forma a provocar interpretações outras não é correto. O vice-prefeito existe para substituir a prefeita. E ela tem direito de cuidar em paz da saúde de seus olhos. A outra vez em que a Folha cometeu injustiça semelhante com Erundina foi em outubro de 1989, quando acusou-a de "folgar" cinco dias na Europa sendo que ela estava em viagem de trabalho e com a agenda carregada.

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No sábado retrasado, a Folha retomou aquela obsessão equivocada sobre o futuro da Europa. "Bonn e Paris querem retardar união europeia", dizia a manchete da terceira página do caderno Mundo. Confundia-se novamente "união europeia" com "unificação monetária". É evidente que o processo de unificação monetária, conforme dizia o texto, poderá sofrer grandes abalos com a abalada economia da Alemanha reunificada. Mas, daí dizer que a "união europeia" poderá se atrasar é novamente misturar alhos com bugalhos. A união europeia começa conforme previsto à meia noite de 31 de dezembro de 1992 com a primeira etapa da unificação: o fim das barreiras alfandegárias. As outras etapas virão depois, levarão à moeda comum e, talvez no futuro, ao governo comum. Mudar o calendário poderá atrasar a união total (econômica e política) da Europa, mas não o processo em curso. Usar "unificação europeia" como sinônimo de "unificação monetária" é não entender direito o que está acontecendo por lá.


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