Folha de S. Paulo


Eu protesto!

Newton Rodrigues, analista político, 70 anos, 47 de jornalismo, não ocupa mais seu espaço, a coluna do Rio de Janeiro, na segunda página. O corte, como é de praxe na casa, foi transparente. No dia 14 de março o Painel noticiou a interrupção da publicação dos artigos porque "o colunista manteve encontro com o presidente da República, que está processando o jornal, sem informar prévia ou posteriormente a sede".

No dia seguinte, a seção de cartas acolheu texto de Newton Rodrigues explicando ter estado a convite do Palácio do Planalto onde falou por meia hora com o presidente Fernando Collor. Ele relatou também uma conversa com o diretor de Redação, Otavio Frias Filho, na qual lhe fora cobrada a "atitude assumida e mantida". Em resposta, Frias Filho falou da campanha movida pelo governo contra a Folha (invasão, processos judiciais) e lamentou a falta de "cortesia" e de "solidariedade" do articulista ao manter encontro, sem informar o jornal, com aquele que "se erigiu em inimigo público número um da liberdade de imprensa".

A correspondência prosseguiu no sábado, 16 de março, com a publicação de carta do secretário de imprensa da Presidência, Cláudio Humberto Rosa e Silva, onde ele defendeu Newton Rodrigues, negou que o governo esteja em "guerra" contra o jornal e devolveu a acusação. Em resposta, Frias Filho falou da "ideia-fixa" do governo em relação ao jornal, "a quem boicota, discrimina e persegue". Acrescentou que o articulista Newton Rodrigues "descumpriu um deve elementar de ética profissional, não ao manter audiência com o presidente da República, mas ao permitir que tal fato viesse ao conhecimento do jornal por meio do porta-voz desse mesmo governo, que está processando colegas seus".

No dia da interrupção da coluna, os leitores começaram a protestar. Lucio Balbi, de Rondônia, se dizia "indignado" e insinuava existir "coisa por trás dessa história". O advogado carioca Luís Fernando P. de carvalho ligou "em nome da intelectualidade do Rio" para protestar contra o ato "odioso e fascista", o desligamento de "um dos melhores colunistas do Brasil". Nairo Fazio, dos Correios de Ribeirão Preto, queria saber se era mesmo verdade a nota. O engenheiro Carlos Enesco protestou contra o "ato revanchista". Nos dias seguintes continuei a receber protestos, telefonados ou escritos, todos criticando o jornal, pedindo mais explicações e exigindo o posicionamento do defensor dos leitores.

O Painel do Leitor já registrou alguns dos protestos recebidos e hoje, passados dez dias da interrupção da coluna, é possível analisar com mais ponderação o episódio.

Não preciso explicar em detalhes quem é Newton Rodrigues. Basta a leitura de seus textos para conhece-lo como James Reston brasileiro. Newton escrevia sua coluna na página dois e, às quartas-feiras, ocupava a página três (Tendências/Debates) para comentários de maior envergadura. No último artigo, publicado depois da conversa com o presidente Collor a anterior em um dia à nota de interrupção - intitulado "Posses, aniversários, propostas e possibilidades" -, ele alinhavava os feitos onde o governo federal dera certo mas não o poupava da crítica mais dura e da comprovação de seu maior problema: o isolamento.

Foi Newton Rodrigues quem, entre os analistas políticos, mais falou da necessidade de ruptura da estrutura do Estado brasileiro. Ele é - isso já foi dito - o jornalista que mais conhece a Constituição. Calejado, entre muitas atividades, foi editor da primeira revista "Senhor" (modelo de jornalismo) e diretor do "Correio da Manhã" em época áurea. Perseguido, ficou oito anos sem escrever em jornal. Conhece as mazelas da existência. É "cobra criada", como gostava de definir, com carinho, Cláudio Abramo.

Newton Rodrigues acabou punido com a interrupção de seus artigos porque não avisou o jornal que iria falar com o presidente, nem antes e nem depois da conversa. Não o foi porque esteve com o presidente, mas porque soube-se da conversa por terceiros. Ao jornal interessava entrevista por ocasião do primeiro aniversário de governo. Ela foi concedida a outros jornais, conforme solicitado. Não houve resposta para a Folha. O governo considerou a conversa com Newton Rodrigues o suficiente. Este, por estar no Rio, longe da rotina da Redação, desconhecia essas marchas e contramarchas. Foi como se lá do alto do Planalto dissessem: vocês querem falar com o presidente? Muito bem, então escolhemos o interlocutor. E foi feito. Além da invasão e do processo judicial, o governo priva sistematicamente o jornal de informações. Coisas de governos onde a truculência e boicote são a resposta aos que ousam o caminho da crítica e da independência, marca da Folha.

Pretende-se que exista uma discussão ética nessa história. O analista político deveria alertar o jornal? Pela leitura das observações de Newton e das respostas de Frias Filho vê-se claramente que existem duas concepções de mundo em jogo e nenhum dos dois abre mão delas. E, defesa do jornal é imperativo dizer que o "Manual Geral da Redação" regula a questão no seu verbete "Convites", publicado à página 28: "Qualquer convite que um jornalista da Folha receba para atividade ou evento ligado ao trabalho deve ser submetido à Direção de Redação". No fundo, o problema é mais funcional do que fundamentalmente ético.

Para Newton Rodrigues, no entanto, estou convencido, não havia o menor problema em ir falar com o presidente, principalmente em Palácio, lugar público. Para o jornal, também estou convencido, era preciso mostrar aos leitores e ao próprio governo que existe uma unidade interna na defesa da independência do veículo, uma determinação de limites. O problema, no fundo, não é o articulista, mas o autoritário governo Collor. Newton Rodrigues acabou sendo usado pelo governo, imerso em uma teia de torpes futricas palacianas - tudo, evidentemente, à sua revelia. Em troca, foi atingido de forma brutal pelo seu próprio jornal. E o leitor está privado de seu concurso diário de reflexão política.

Na defesa do interesse do leitor, eu protesto contra a interrupção de seus escritos, um ato desmedido"

Retranca
O distanciamento do jornalista em relação aos fatos, necessário para mostrar sua isenção, não implica na castração de sua capacidade de indignação. Há ocasiões nas quais de impõe uma ira justa.

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Exemplo recente foi o da tempestade que inundou a cidade de São Paulo na terça-feira. A edição de quarta-feira da Folha, um dia depois do caos, apareceu asséptica e fria, despida de qualquer emoção. Até o impacto que as fotografias de ruas inundadas e pessoas ilhadas poderia provocar foi diminuído com a redução das fotos na primeira página. Sufocou-se aquilo que de sensacional existiu no dia - no exato sentido da palavra.

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A cobertura da Folha estava correta. Faltou, porém, sensibilidade para a dimensão do problema enfrentado pela população. Praticamente todos os leitores da Grande São Paulo vivenciaram de certa forma alguma dificuldade ou acompanharam problemas de parentes, colegas de trabalho ou amigos. A Folha chegou a ouvir o depoimento de personalidades sobre os transtornos, mas deixou de lado aquilo que os ditos jornalistas românticos chamavam de "história humana". Despidas da pieguice que as marcaram, e feitas com um mínimo de emoção e um máximo de dados concretos, essas reportagens dariam outra cor à cobertura. O jornal precisa estar próximo do cotidiano dos leitores sob pena de perdê-los definitivamente por falar da estratosfera quando as águas invadem a planície. A Folha de quarta-feira parecia editada por robôs, distantes anos-luz das águas que submergiram grande parte da cidade e levaram embora quatorze vidas

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Na cobertura da enchente é de se destacar a sequência de fotos de autoria de Wilson Magão publicada pelo "Diário do Grande ABC". Nela se mostra, cena por cena, a dramática tentativa de resgate de Glória Nakandakare de dentro de um Kadett quase coberto pelas águas. Vê-se o exato momento em que ela, retirada de dentro do carro, cai n'água e o bombeiro leva as mãos à cabeça num gesto de desespero. Glória afundou e desapareceu nas águas do Ribeirão dos Meninos que transbordou nas proximidades do quilômetro 13 da via Anchieta.

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Última observação sobre as chuvas: na quarta-feira, o jornal não demonstrou a preocupação básica de saber o paradeiro da principal autoridade da cidade, a prefeita Luiza Erundina. "O Estado de S.Paulo" informou que ela estava no Rio, defendendo a tarifa zero num seminário de nome sugestivos: "Cidades - Anos 90, Catástrofe e Oportunidade".


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