Folha de S. Paulo


Sobre furto, lama e fotos

Duas fotos publicadas recentemente chamaram a atenção de leitores e provocaram protestos, a do flagrante de furto numa rua do centro da cidade de São Paulo e a de alunos de geologia da USP em flagrante banho de lama.

No primeiro caso, o do furto, aparece problema clássico de ética jornalística. Leitores queriam saber se o jornalista não deveria impedir o furto em vez de documentá-lo. "Por que o repórter não avisou o proprietário da Kombi?", perguntou Ibraim Musi Leão, dono de um posto de gasolina em Jaboticabal (SP). "Naquela distância, tão perto, ele não poderia ter impedido?", questionou Dinemar Zócoli, analista de sistemas em Florianópolis (SC).

Por diversas vezes o jornalista se vê em condições semelhantes. O fotógrafo de matupá, por exemplo, teria feito melhor se tentasse evitar o linchamento dos assaltantes em vez de documentar com sua câmera de vídeo a cena e colocar a tragédia de Matupá no mapa dos problemas do país? Eddie Adams, fotógrafo da Associated Press, teria como impedir (ou deveria) em primeiro de fevereiro de 1968, em Saigon, que o general Nguyen Ngoe Loan desse um tiro na cabeça do suspeito comunista preso? A foto do momento do tiro ganhou o prêmio Pulitzer de 1969. Malcolm Browne, também da Associated Press, deve ria ter impedido que o monge budista em Saigon não se imolasse, sentado e ereto, impedindo o mundo de ver o protesto em cuja foto encontrou seu maior impacto?

O caso da foto do furto da kombi é bem menor mais levanta a mesma discussão, a da cumplicidade. O fotógrafo Ormuzd Alvez, 36 anos, 11 de profissão, foi quem descobriu a pauta e a propôs ao jornal. Ele tinha ido na rua Senador Feijó, ao lado da Catedral da Sé, numa loja de material cirúrgico. O balconista alertou para um furto em andamento na rua. O motorista de uma Kombi dormia enquanto dois homens levavam parte da carga. Segundo o balconista, todo mundo na rua sabia dos furtos, a polícia era avisada, vinha e fazia a ocorrência mas no dia seguinte os furtos se repetiam. A gangue deveria ser de mais ou menos uns vinte homens.

Ormuzd propôs o assunto ao jornal e voltou ao local na quarta-feira passada, acompanhando de um repórter. Subiu à varanda do segundo andar de um prédio e ficou à espreita. Chegou às 10h10 e às 11h25 conseguiu o flagrante. Os dois desceram e avisaram o motorista. Ele nada percebera. Enquanto dava informações a um membro da gangue, um outro arrombava a porta traseira da Kombi e um terceiro levava as mercadorias. Era cinco homens ao todo. Foi tudo muito rápido e não durou mais do que cinco minutos.

Para Ormuzd Alves "o papel da imprensa é informar e alertar". Acha importante mostrar o flagrante para a polícia saber que é possível pegar os assaltantes. Ele bateu vinte chapas com uma objetiva de 180 mm. Estava a 50 metros da Kombi e poderia ter avisado o motorista. Mas está seguro de que sua fotografia publicada teve um impacto muito maior, tanta que levou ao reforço do policiamento (ao menos momentâneo) no local. "Se eu tivesse impedido o furto, no dia seguintes os assaltantes estariam lá de novo".

Não há dúvida, o serviço público prestado elo flagrante, no caso, foi maior que a consequência do furto, sempre em relação ao caso específico. O jornalista ficou de tocaia à espera de algo que poderia ocorrer. Não estava ali para documentar nenhum crime anunciado, mas um crime previsível - também para a polícia.

No segundo caso, o do trote, o protesto transcende a fotografia, seu estopim. O pessoal do banho de lama, estudantes do instituto de geociências da USP, acha que a legenda publicada ("veteranos atiram calouros de geologia em poça de lama...") distorceu o significado da foto porque tratava-se de atividade de "integração" entre calouros e alunos num ambiente "normal" para os futuros geólogos, o contato com a terra. Veteranos e calouros me ligaram para dizer que aquilo não era trote violento e, ainda por cima, quem estava sendo jogada na lama não era uma caloura, mas sim a própria presidente do centro acadêmico, Denise Shimizu.

O autor da fotografia é Adi leite, 28 anos, seis de profissão. Ele e uma repórter estavam de passagem pelo local, cumprindo outra pauta na USP, quando a atividade chamou-lhes a atenção. Com uma lente de 180 mm, distante 100 metros, ele documentou a cena. Ouviu a moça (Denise) gritar, reclamar que machucavam seu braço, impor certa resistência. Outros estudantes, atesta Adi, se jogavam espontaneamente na lama. Quando eles viram o fotógrafo insinuaram que podiam lhe dar um banho de água com uma mangueira, usada para limpar o pessoal da lama. Adi não sabia se estavam brincando ou falando sério e saiu do local.

Não só a legenda errada da foto provocou protesto. As reportagens sobre os trotes na USP também. Professores ligaram para dizer que a Folha acabou esvaziando o campus durante a primeira semana de aulas ai informar genericamente que não havia aulas. Em diversas unidades, me garantem, elas transcorreram com normalidade. Nesse caso, concordo, faltou precisão ao jornal. Sobre o trote, alunos veteranos garantiam que o de estilo violento está diminuindo ano a ano e o jornal não fez um trabalho comparativo. Professores, veteranos e calouros sugeriram também que o jornal cuidasse de coisa mais importante como a crise econômico-acadêmica na qual a USP estaria imersa. As sugestões foram passadas à Redação.

Sobre o trote, eu já havia recebido queixas do pessoal do Grêmio Politécnico e do centro acadêmico da Escola de Comunicação e Artes. Reclamaram por ocasião de reportagens quando da inscrição dos alunos novos. Na época expliquei que eles jamais teriam o ombudsman a seu lado, exatamente porque estou aqui para defender os interesses do leitor - a informação exata e confiável - e não o trote físico na USO ou em qualquer lugar, por mais brando que seja. O mesmo foi dito ao pessoal da Geologia agora. Informei que encaminharia sugestão de retificação de todas as informações erradas publicadas mas, pessoalmente, achava que o jornal havia sido brando demais nas reportagens sobre este espetáculo humilhante e medieval - que este ano já levou à morte um estudante de Osasco.

Após encontro com estudantes na própria USO e depois de receber uma comissão de calouros e veteranos na minha sala, fiquei sabendo existir da parte dos veteranos de Geologia e de outras unidades (como da Escola de Comunicação e Artes ou da Poli) determinação de fazer da semana inicial de aulas uma integração pacífica e cordial. O reitor da USP já tomou suas providências contra o trote violento. O jornal já publicou íntegra de carta da presidente do centro acadêmico da Geologia defendendo a integração. Mesmo assim alunos da Geologia entregaram abaixo-assinado à Folha onde sustentam que o jornal está movendo uma "injusta e tendenciosa" campanha contra os alunos.

Na sexta-feira saiu um "Erramos" corrigindo parcialmente a legenda da foto da lama (omitiu-se que foto semelhante e com legenda errônea foi publicada também na primeira página). A conclusão disso tudo, manias de perseguição à parte, é que se a legenda da foto dos estudantes na lama "distorce" uma realidade porque se trata de brincadeira, ela não deixa de ser violenta em si mesma. E a imagem que fica dos estudantes é ruim. Não há como fugir da realidade da foto por mais errada que estivesse a legenda. Se os alunos da USP querem respeito da imprensa - e têm esse direito - devem dar-se também ao respeito. E o trote com "brincadeiras" físicas é um costume bruto para o qual não existe desculpas.


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