Folha de S. Paulo


Da Folha da guerra

A Guerra do Golfo estourou na Folha com um ponto de exclamação! "Começa a guerra", manchetou ela em 17 de janeiro, contrariando a praxe. Nem no registro da vitória dos aliados na Segunda Guerra utilizou-se a exclamação em manchetes de jornais sérios como o "Herald Tribune": "Vitória". Ou a Folha: "Renderam-se incondicionalmente aos exércitos aliados as forças germânicas de terra, mar e ar". Observação formal, sem importância frente aos inúmeros e insondáveis problemas jornalísticos inaugurados pela Guerra do Golfo, embaralhando jornalistas, notícias e censura.

Você deve estar cansado de ler neste mesmo jornal que, na guerra, a primeira vítima é a verdade, axioma do século 19 recuperado por Phillip Knightley, autor do best-seller de mesmo nome, "A Primeira Vítima". Passados 17 dias de bombardeamento de informações - e algumas lamúrias -, aprendeu-se a desconfiar das informações do Pentágono, da rádio Mãe das Batalhas ou da rádio Israel. Neste jornal, diversos articulistas alertaram para a ausência completa das verdades (as respectivas de cada lado do combate), para a descontinuidade das informações e para as mistificações e parcialidades de cobertura jornalística.

Nem tudo, porém, é propaganda amiga nem contra-propaganda. Do cipoal de notícias desencontradas, alguma coisa é possível saber, passado o fato, comparado o dito com o visto. Interessa, portanto, é saber os equívocos da Folha nessa cobertura. Que ela é única no seu caderno suplementar, o Guerra, e que acertou naquele editorial pacifista de capa, todos sabem e concordam.

O seu maior erro o jornal não reparou por intermédio do "Erramos". Parte da edição de 18 de janeiro circulou com manchete em linha dupla, completamente estapafúrdia: "Sadam lança armas químicas; Israel reage e entra na guerra". Obviamente não aconteceu nada disso. Constatada a inveracidade, a manchete acabou sendo substituída por outra, correta em função das informações disponíveis.

O secretário de Redação, Leão Serva, reconhece: "Foi informação errada que nós demos ao leitor a partir do confuso e contraditório noticiário televisivo". Serva concorda também que houve precipitação. Conta que a edição foi fechada às 22 horas com outra manchete ("Míssil de Bagdá ameaça Israel; Brasil decide racionar combustíveis"). Por volta das 22h20 explodiu o primeiro míssil em Tel Aviv. A Folha estava sendo impressa, então, com a manchete ultrapassada pelos fatos e foi providenciada a troca pela manchete torta. Até a detecção do erro, imprimiram-se 80 mil exemplares. Eles estavam sendo distribuídos para os diferentes pontos do Estado e do país quando o jornal começou a rodar com a manchete definitiva: "Sadam ataca Israel com mísseis; cresce a guerra no Oriente Médio". Ou seja, 80 mil leitores consumiram o jornal com informação errônea.

Outros equívocos - de menor dimensão porém de não menos importância - já tinham acontecido. Outro tanto veio depois. Logo no dia do ataque inicial, a manchete do caderno Guerra desperdiçava parte de seu tiro: "Sadam é o primeiro alvo". No texto, a informação era de que as forças anti-Iraque iniciaram por volta das 2h30 (hora de Bagdá) o bombardeio do Iraque e do Kuait. Não foi apenas o palácio de Sadam o primeiro alvo. Inumeráveis outros objetivos militares, no Kuait e no Iraque, fizeram-lhe companhia.

Nesse mesmo dia, texto com destaque na primeira página informava que o "pior" cenário da guerra previa um "confronto EUA-URSS". Assinado por Marco Chiarett, em grifo, para ressaltar o caráter analítico, no estilo vale-tudo, o texto apontava a mira para a "mais dramática" probabilidade: "a ação da URSS ao lado de seus tradicionais aliados iraquianos". Os militares soviéticos, numa "situação limite", poderiam derrubar Gorbatchev e impor aliança com Bagdá. Nem Nostradamus arriscou tanto. Aliado por aliado, não foi só a URSS que teve o Iraque antes dessa guerra, e nem somente ela que deu ajuda (técnica ou militar" a Sadam Hussein antes de ele virar inimigo do mundo judaico-cristão. No limite, para usar o mesmo raciocínio, o Brasil, A Argentina, a Suíça, a Bélgica, a França, a Alemanha e os EUA poderiam também se aliar a Bagdá e acabar combatendo contra eles mesmos.

A Folha produziu ainda edição extra, como nas melhores guerras do passado. Operação louvável, mas dispensável quando a televisão fica 24 horas no ar dando as notícias (ou contra-notícias) quentes da "fronteira da guerra". De quebra, o conflito agora aguçou a impossibilidade prática de concorrência entre a mídia impressa e televisão. Daí o esforço inútil de uma edição extra circulando no fim da manhã com o noticiário defasado em relação ao imbatível ritmo da TV.

A edição extra noticiosa, no caso, desperdiça trabalho e cérebro na preparação daqui que o jornal poderia dar melhor, além da notícia pura: a análise, as reportagens dos casos individuais, os mapas, a descrição detalhada das ações, o esquema dos ataques, o detalhamento do material bélico, o melhor fotograma do videogame da guerra, a foto mais dramática da vítima, tudo que o texto e a imagem (congelada) podem oferecer além do espetáculo pictórico e informativo da televisão. E que deve ser feito todos os dias, sem necessidade de edições extras. A televisão sepultou esse recurso e, se os jornais dormirem no ponto, acabam sepultados juntos.
Apareceram outras manchetes bastante discutíveis. Em ordem cronológica:
1. No dia 21, em primeiro clichê: "Míssil de Bagdá atinge capital árabe". No segundo clichê corrigiu-se o "árabe" por "saudita".
2. "Navio brasileiro se rebela no Golfo", dia 24. Quem leu apenas o enunciado, levava a falsa impressão de que navio brasileiro entrara de alguma forma no conflito. O sensacionalismo arrefecia, felizmente, quando se lia a chamada e verificava-se tratar-se apena da recusa do capitão de um petroleiro da Petrobras de entrar no golfo Pérsico - capitão providencialmente substituído.
3. Nessa última semana, a terça-feira, o jornal ignorou a história da "primeira vítima" e arriscou algo que nem o responsável pela informação teve coragem. Manchetou: "Iraque mantém seu poderio militar". A afirmação vinha de reportagem do "The Washington Post", assinada pelo Bob Woodward (jornalista do caso Watergate) e não fora manchete no jornal americano, mais cuidadoso do que a Folha. A reportagem baseava-se em fontes militares não identificadas do Pentágono e, enquanto tal, mesmo levando em conta o peso do nome de seu autor, era de confiabilidade delicada. Ela alinhava números (quantidade de plataformas em uso, campos de pouco destruídos etc.) destruídos pelo próprio texto de capa da Folha. Ao reconhecer a impossibilidade de checar, com precisão, as baixas da guerra, o jornal explicava que "os dois lados censuram notícias".
4. No dia seguinte, quarta-feira passada, os torpedos da Folha se dirigiram contra a organização de Yasser Arafat: "OLP entra na guerra com ataque a Israel". O texto do enviado especial a Israel, no entanto, se encarregava de mostrar o exagero da manchete: "Israel teme que os palestinos abram uma segunda frente na guerra".

Na mesma quarta-feira, o jornal omitia a notícia da comunicação conjunto EUA-URSS, divulgado nos EUA, onde ambos faziam oferta de paz ao Iraque, desde que esse assumisse o "compromisso inequívoco" de sair do Kuait. O assunto só foi recuperado no dia seguinte. Ainda na quarta, a primeira página ignorava a renúncia do ministro da defesa da França por discordar do bombardeio francês ao Iraque - somente o Kuait deveria ser alvo dos ataques. Um dia antes, título na capa do caderno da guerra comparava versão segundo a qual os aviões do Iraque haviam "fugido" para o Irã, movimentação até agora inexplicada.

Os alvos falsos espalhados pelos Iraque em seu território também não mereceram destaque no dia em que se soube deles, 23 de janeiro. Idem para a fortaleza subterrânea de Sadam em Bagdá, cuja riqueza de detalhes até as televisões retrataram melhor que a Folha quando "recuperou" o assunto dia 24.

Uma certa esquizofrenia geográfica também chamou atenção. Até dia 25, o texto de abertura vinha assinado por Clóvis Rossi, enviado especial a Jerusalém. Deram-lhe mais tarefas do que o necessário e recomendável a um enviado especial. De Jerusalém, Rossi resumia o que tinha acontecido em Israel Iraque, Irã, Estados Unidos, Egito, Arábia Saudita e até em Tóquio. Tudo "normal" porque o jornal tinha Jair Rattner, em Lisboa, para falar dos israelenses que estavam tratando os bombardeios como rotina; Marcos Augusto Gonçalves. Em Milão, para noticiar que o chefe da defesa iraquiana fora "eliminado" por Sadam; e Caio Blinder, em Chicago, para relatar como o subsecretário americano de Estado, Lawrence Eagleburguer, tinha "medido bem" suas palavras no lobby do hotel Hilton...em Tel Aviv.

Enfim, e por fim, imagino a reação do jornalista Sérgio Augusto ao se deparar, no dia 25, com o título dado ao seu artigo sobre as outras vítimas da guerra, aquelas ignoradas pela mídia como as relíquias históricas do Iraque. "s maiores vítimas da guerra tem cinco mil anos", foi o título. Como se um sítio arqueológico fosse vítima "maior" do que uma criança...


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