Folha de S. Paulo


Votos de independência

A Proclamação da República, em 1889, também serviu para trazer ao Brasil um correspondente francês, Max Leclerc. Nas suas observações sobre os jornais, ele anotou: "A imprensa no Brasil é um reflexo fiel do estado social nascido do governo paterno e anárquico de D. Pedro 2º; por um lado, alguns grandes jornais muito prósperos, providos de uma organização material poderosa e aperfeiçoada, vivendo principalmente da publicidade, organizados em suma e antes de tudo como uma empresa comercial e visando mais penetrar em todos os meios e estender o círculo de seus leitores para aumentar o valor de sua publicidade do que empregar sua influência na orientação da opinião pública. Tais jornais ostentam uma certa independência, um certo ceticismo zombeteiro, à maneira do nosso 'Figaro', ou se mostram imparciais até a impassibilidade".

Leclerc ia adiante: "Nos jornais mais lidos, os anúncios invadem até a primeira página: transbordam de todos os lados, o espaço deixado à redação é muito restrito e, nesse campo já diminuto, se esparramam diminutas notícias pessoais, diz-que-diz-ques e fatos insignificantes: o acontecimento importante não é, em geral, convenientemente destacado, porque ao jornalista como ao povo, como ao ex-imperador, falta uma concepção nítida do valor relativo dos homens e das coisas; carecem eles de critério, de um método". Leclerc foi ainda mais impiedoso: "A imprensa em conjunto não procura orientar a opinião por um caminho bom ou mau; ela não é um guia, nem compreende sua função educativa; ela abandona o povo à sua ignorância e à sua apatia".

Nelson Weneck Sodré, na sua "História da Imprensa Brasileira", considerou as observações de Leclerc "exatas e agudas".

Passados 101 anos da fundação da República, terminado o ano de 1990, encerrada a década de oitenta, o que mudou na imprensa brasileira além da modernização tecnológica?

As anotações de Leclerc (discutíveis, evidente, a partir mesmo da discutível qualidade da imprensa francesa -basta ler Balzac) servem como oportunidade para contraponto da situação atual.

A começar pela realidade do país. Outros imperadores tomaram conta do poder, com ou sem voto, e o paradoxo do governo "paterno e anárquico" se mantém de pé, de certa forma, com muitas das características que talvez tenham impressionado opinativo jornalista francês.

Quanto à imprensa brasileira, ela mudou muito. Também, paradoxalmente, evoluiu e involuiu. Hoje não se procuram mais leitores apenas para garantir mais publicidade. Além de parte da receita, a quantidade e a qualidade do leitorado é marca da credibilidade. A imprensa melhorou bastante na sua parte técnica. Os anúncios, que antes tomavam as primeiras páginas, agora se espalham páginas a dentro e deixaram de ser o fundamento do produto A informação ocupou esse lugar. Nas primeiras páginas se destacam acontecimentos importantes. Para os diz-que-diz-ques inventaram as colunas sociais.

A coisa começa a complicar quando se examinam as questões de fundo tocadas pelo francês. Se a concepção do valor relativo dos homens e das coisas pode ser ainda um problema para determinados órgãos da imprensa, não se pode concordar que o povo foi "abandonado" à sua ignorância e apatia. Foi pior. A situação de miséria no país cresceu geometricamente enquanto as vendagens dos jornais diminuíram aritmeticamente -sempre em relação ao crescimento vegetativo da população. Em outra porta, a televisão veio alimentar apatias...

Mas o ponto central nessa conversa é o da independência, alma do jornalismo. Leclerc detectou "certa independência" aliada ao "ceticismo zombeteiro". Quem pode dizer que a imprensa brasileira, em geral, é independente financeira e politicamente? Ninguém. As exceções, contam-se nos dedos -entre elas a Folha.

Por mais discutíveis que possam ser esses conceitos, não existe conversa séria sobre "guia", "orientação" da dita opinião pública sem o ingrediente fundamental da independência.

No seu número de setembro, a revista "Imprensa" ouviu profissionais do jornalismo para perscrutar o futuro da imprensa brasileira nos anos noventa. Queria saber o que é necessário além de mais ética, mais profissionalismo e mais tecnologia. Alberto Dines, feroz crítico da mídia nos anos setenta, pediu que ela assuma seu papel de formadora de cultura. Menos o de "guia" e mais o de formador, receptáculo e divulgador não só de idéias. Pois sem a independência, nada disso é possível. O saudável ceticismo (zombeteiro ou não), se é recomendável como estado de espírito, não faz tanta falta quanto a total desvinculação em relação aos poderes -governamentais, empresariais, partidários ou sindicais.

Enfim, é triste, mas a "certa independência" detectada com tanta facilidade por Leclerc no final do século passado se mostra cambaleante cem anos depois.

RETRANCA

-Recebo carta do Sr. Cláudio Augusto da Rosa Ferlauto, arquiteto e designer da Qu4tro Design. Ele manda junto o "Guia TV" do Caderno 2 de "O Estado de S.Paulo". Ele junta a página de televisão da Ilustrada e afirma que as "principais idéias e soluções gráficas são copiadas diretamente" do seu projeto para o "Estado" Ele acrescenta: "Esperamos que a Folha, utilizando sua autoproclamada capacidade crítica, substitua esta cópia de nosso projeto, por uma solução criada por seus profissionais, respeitando desta forma nossos direitos autorais e de criação". Passei o dossiê para a Redação da qual recebi resposta em relatório do editor da Ilustrada, Mário César Caralho. Ele não acha certo acusar de cópia o atual quadro de programação de TV do caderno. "Foi esta Folha o primeiro dos grandes jornais a adotar a estrutura de matriz para distribuir programação de TV. O novo formato passou a circular no dia 30 de outubro do ano passado". Conforme Carvalho, a Ilustrada estava apenas inovando no mercado brasileiro ao optar pelo sistema matricial, porque o formato já era usado nos jornais americanos havia mais de duas décadas. Diz que o quadro planejado pela agência Qu4tro "prece adotar a principal mudança introduzida pela Folha -o sistema de matriz". O jornalista finaliza: "Nem por isso a Folha cogitou acusar de cópia o novo sistema. Simplesmente porque não há 'paternidade' para esse tipo de projeto gráfico. Se houvesse, os jornais americanos seriam os primeiros a cobrar copyright". Realmente, examinando os dois quadros, vê-se que existem semelhanças. Ambos optam pela verticalização da relação dos programas e horizontalização dos nomes das emissoras. Mas as explicações do editor da Ilustrada em defesa do seu quadro me parecem plausíveis.

- Este ombudsman foi assunto de novo no "Estado", na Coluna do Estadão", o Painel de lá. A nota "Duplo ombudsman" (quinta-feira) dizia existir um ombudsman que escreve para o público insistindo em comparar "favoravelmente" esta Folha com o "Estado", e um outro ombudsman que nos relatórios internos, "longe dos olhos do público, não economiza elogios ao 'Estado'". Outra nota reproduzia elogios feitos por mim, em crítica interna, ao "Estado" do dia 21 de março (e não 22 conforma anotaram) na cobertura da morte da refém Adriana Caringi. Na edição de ontem, a "Coluna do Estadão" volta à carga dizendo que este ombudsman "elegeu o 'Estado' alvo predileto de suas críticas". Mais duas notas reproduzem considerações de outra crítica interna (sempre de março) onde apontei falhas na Folha -como faço diariamente. Contudo, os leitores da minha coluna sabem que não "insisto" em comparar a Folha favoravelmente ao "estado" ou qualquer outro. Tenho sido implacável em relação aos erros técnicos deste jornal. Os leitores desta coluna sabem, também, que no dia 25 de março escrevi aqui mesmo que a Folha saiu-se "muito mal" na cobertura da morte de Adriana Caringi. E sabem, de sobra, quantas vezes o "Estado" foi citado de maneira favorável nesta coluna dominical. De agosto para cá, por exemplo, saudei o lançamento do seu "Manual"; elogiei-o quando publicou com destaque aquela sentença do juiz de Assis absolvendo um genro que bateu na sogra; citei-o quando revelou com todas as letras o romance entre a ministra Zélia e o então ministro Bernardo Cabral; falei do acerto do jornal em fazer manchete sobre a saída de Motta Veiga da Petrobrás; elogiei o seu coirmão "Jornal da Tarde", quando numa série de reportagens, sintetizou muito bem os problemas do presidente Collor com o Congresso.. Para o leitor isento, o nervosismo dos editores do "Estado" vem provar, infelizmente para eles, o quanto de má-fé está envolvida contra este ombudsman. De toda forma, agradeço por tornarem público parte do meu trabalho interno. Além de mostrar o quão interessados estão em relação a ele, exibe minha atenção permanente na defesa dos leitores e não no aperfeiçoamento da Folha.

- Por falar em má-fé, até ontem o "Estado" não havia corrigido informação falsa que publicou -desmentida publicamente-segundo a qual o jornalista e escritor Ivan Lessa teria sido convidado para ocupar o lugar de Paulo Francis nesta Folha.

- Como o ombudsman não é duplo, vai tirar férias. Mas o leitor pode deixar seus recados no telefone de sempre (011-874.2896) e continuar escrevendo. Estarei de volta em primeiro de fevereiro, quando retornarei as ligações e responderei às cartas. Feliz 1991!


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