Folha de S. Paulo


Pesos e medidas

O noticiário da imprensa estrangeira mostrou-se mais crédulo no episódio do acordo nuclear assinado pelo Brasil e Argentina do que o desta Folha, de "O Estado de S.Paulo" e de "O Globo". O "Jornal do Brasil" acompanhou os estrangeiros. Um dia antes da assinatura do acordo, o "JB" sustentou em primeira página que "Argentina e Brasil não farão bomba". Essa mesma certeza não se evidenciou nos enunciados dos outros três grandes matutinos. Eles ressaltaram, sem muito estardalhaço, o compromisso conjunto de fiscalização das atividades nucleares para fins pacíficos. A Folha teve o cuidado de explicar em texto bastante didático que Brasil e Argentina ainda não assinaram o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1968, quando foi eleito o clube de países militarmente nucleares (EUA, URSS, França, China e Grã-Bretanha), aqueles com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Em todo o caso, o acordo rendeu espaço e noticiário positivo na mídia internacional. Tanto para o influente diário americano "The New York Times" quanto para o vespertino francês "Le Monde" a Argentina e o Brasil "renunciaram" às armas atômicas. A conferir.

...

Desde o início do conflito no golfo Pérsico esta Folha adotou posição belicista no noticiário. Analisei, no final de agosto, interpretações de noticias considerando iminente a guerra contra o Iraque. Para o jornal, os EUA estavam na iminência de atacar o Iraque, invadir o Kuait e ameaçavam usar a força sem o aval da ONU. As notícias e análises eram exageradas ou não correspondiam exatamente ao seu teor. O uso abusivo e ligeiro do verbo recuar é o mais irritante. O noticiário do jornal desejava que Bush retomasse o Kuait em agosto e ele não o fez. "Iraque anexa o Kuait; EUA recuam", foi o destaque quando Bush despejava mais e mais soldados na região recuando apenas no título do jornal. Ou seja, aumentava a pressão militar sem disparar tiros. Agora, no final da semana passada, quando o presidente americano propôs diálogo ao Iraque, mais uma vez veio à tona interpretação apressada: "Bush recua e propõe diálogo com o Iraque". Aquilo que se mostrou como outro lance na tentativa de resolução diplomática do caso virou "recuo". Pelo visto, estrategistas na Folha não conhecem a palavra 'também'. Ou seja, a última resolução da ONU, a que prevê o uso de força, também foi mais um importante lance diplomático em favor da resolução pacífica. Se não der certo, então as forças ocidentais terão a ONU do seu lado no momento da guerra. Tudo leva a crer que a guerra pode vir mas só depois de esgotadas todas as possibilidades de resolução pacífica. Estão sendo usados dois pesos e duas medidas diferentes para interpretar esse noticiário. Os recuos de Sadam Hussein não são vistos como tais. Na sexta-feira, anunciada a disposição do Iraque de libertar todos os reféns, a notícia apareceu sem maiores retoques: "Sadam diz que vai libertar todos os reféns estrangeiros". No caderno de Economia, então, o gesto de Sadam foi saudado como sintoma de determinação: "Decisão de Sadam faz cair preço do petróleo". Em resumo, para a Folha, até agora, Sadam decide e Bush recua.
...
Manchetes da Folha e do "Estado", sexta-feira, revelam os humores dos respectivos jornais em relação ao governo. "Collor prevê ano cinzento em 91", conforme a Folha. Ou, de acordo com o "Estado", "Collor prevê um mau ano novo e um bom 1992". A Folha ressaltou apenas parte da previsão presidencial, a pior. O concorrente transmitiu o recado total, otimista no fim. A frase de Collor colhida pelo governador eleito de Roraima é a seguinte: "91 será um ano cinzento, ainda difícil; os anos dourados só começam em 92". Mais do que seu estado de espírito, o concorrente revelou no enunciado a notícia por inteiro. O discutível, no entanto, é se previsões valem manchetes, mesmo as presidenciais. Para o "JB" e o "Globo", não. Ambos noticiaram a previsão de Collor em páginas internas. E estacaram só sua parte "cinzenta", como a Folha.

...

No dia primeiro de junho passado o caderno Ciência publicou foto na capa mostrando larva transmissora de malária. Três dias depois chegou carta de leitor apontando erro na identificação. Com base em características diferenciais mínimas, como o tamanho do sifão respiratório situado no oitavo segmento abdominal, o leitor indicava a larva como do gênero Culex e não do gênero Anopheles, conforme registrado na reportagem. A carta foi passada à editoria de Ciência e a resposta não contemplava dúvida. A legenda tinha sido escrita a partir de informações da agência inglesa Science Photo Library, que "dificilmente comete equívocos". Não me convenci e sugeri reconfirmação. Por intermédio de fax, responsável pela agência lamentou não poder resolver a dúvida imediatamente porque o fotógrafo vivia na Dinamarca. Mas prometeu resposta. Cinco meses depois, no final de outubro, a Science Photo Library passou outro fax confirmando o acerto do leitor. Nesse meio tempo a carta do leitor tinha sido arquivada após resposta prometendo a conferência e retificação em caso de erro. Por falha na seção do ombudsman foi impossível recuperar o original, mas para o ombudsman a reclamação viera de uma leitora. Foi assim que a retificação operada na página H-3 do caderno Ciência do dia 23 de novembro referia-se à "leitora de vista aguçada". Outro erro. Felizmente o educador sanitário Allan Martins da Silva, de Jacarezinho, escreveu para cá, honrado, agradecendo a retificação do nome da larva e com o intuito de "retomar outro erro", desta vez no seu entender "mais evidente" e cuja correção fazia "com convicção". Ele explica: "Se o artigo refere-se a mim, venho a dizer que Allan é nome masculino". Pois não, Allan, equívoco desfeito.

...

Leitor também erra. O caderno regional sp-nordeste publicou nota brincalhona no seu Painel de estréia. Negrão Azevedo, ex-vereador de Ribeirão Preto, borracheiro, havia colocado à venda seu velho automóvel, transformado em helicóptero Mas ninguém se interessara em comprar helicóptero que nunca decolara. Um leitor da cidade ligou para dizer que se tratava de avião e não helicóptero. O pedido de retificação foi para a crítica diária do ombudsman. A reação de um dos responsáveis pelo caderno foi imediata: "a aparência do tal veículo é a de um helicóptero". Continuava: "cabine arredondada, cauda afilada e duas pás de hélices sobre o teto, perpendiculares a um eixo e paralelas ao corpo do veículo". O ombudsman chamou de volta o leitor. Ele ficou na dúvida e resolveu conferir. Em menos de duas horas retornou a ligação: " O jornal tem toda a razão. Eu tinha visto o aparelho à noite em posição transversal à rua e o rabo lembrava uma asa".

...

O ombudsman tem lá suas "histórias reais". Reproduzo parte de diálogo com leitor, na terça-feira. Ele começa:

"Veja aí, por favor, a reportagem sobre o Sting".

"Sim, na página A-4."

"Por que a Folha insiste em escrever os nomes indígenas em dáblios e cás quando essas letras não existem no alfabeto brasileiro?"

"Quais nomes?" Enquanto isso o ombudsman abre o dicionário "Aurélio".

"Por que não escrevem certo em português? Já vi até Ianomami escrito com ípslon..."

"É, sim, o dicionário grafa Mencragnoti com letra cê. Vaurá com vê e não com dáblio. Vou encaminhar seu protesto à Redação. Qual é seu nome?"

"É Walter com dáblio..."


Endereço da página: