Folha de S. Paulo


Ninguém adiou unificação europeia

Esta Folha cometeu na segunda e terça-feira passadas grave erro de informação, talvez o maior da imprensa brasileira neste ano.

Tudo começou com a manchete de segunda, "Europa decide adiar a unificação". Ocupava toda a largura da primeira página. Com base em interpretação equivocada do resultado de reunião de cúpula, afirmou-se: "Os países da Comunidade Européia decidiram ontem em reunião de seus chefes de governo em Roma adiar a unificação da Europa, prevista para 1993. A proposta, feita pelo chanceler alemão, Helmut Kohl, com apoio da maioria dos países-membros, é de que a unificação se dê em primeiro de janeiro de 1994 (...) Todos os chefes de governo, com exceção da Grã-Bretanha, reiteraram o desejo de união política e monetária, com a ciração de uma moeda única". O texto interno seguida na mesma toada: "Onze dos 12 chefes de governo dos países da Comunidade Européia decidiram adiar a unificação do continente, prevista para acontecer no primeiro de janeiro de 1993...". O título idem: "Comunidade Européia decide adiar unificação".

Somente em relação aos títulos e ao texto da primeira página o jornal conseguiu confundir eventos diferentes, perpetrou dois equívocos factuais e deu interpretação errônea do acontecido na cúpula. Depois reincidiu na desinformação ao retomar o assunto.

A confusão: o jornal confunde o início da unificação européia, o grande mercado único, com união econômica, monetária e política. Não se pode usar a palavra unificação como sinônimo de fases dessa união. As unificações econômica, monetária e política são fases futuras do processo. Tudo começa com o grande mercado. A Europa comum, cuja base é o desmantelamento das barreiras alfandegárias, a padronização das tarifas fiscais, continua firme. Terá início na zero hora do dia primeiro de janeiro de 1993 e, neste ponto, nada mudou.

O primeiro erro factual: mesmo supondo que se pretendia dizer unificação monetária quando se falou em unificação da Europa não existiu absolutamente adiamento de data. Ao contrário. Contra todas as expectativas, pela primeira vez, os líderes europeus (chefes de Estado e de governo), fixaram data (primeiro de janeiro de 1994) para o início da segunda fase da unificação prevista nos planos da Europa comum: paridade das moedas, criação do Banco Central Europeu, passos necessários para a adoção da moeda única. Até então inexistia data marcada, apenas indicação dos ministros da economia europeus no sentido de começara a unificação monetária em conjunto com grande mercado. A pobreza da interpretação consistiu exatamente em tomar como padrão de grandeza indicações ministeriais quando quem manda são os chefes de Estado e/ou de governo. Seria o mesmo dizer que o casamento de alguém foi adiado poraquê a família teria sugerido certa data para a cerimônia religiosa e os noivos efetivamente marcassem a data para alguns dias depois do casamento civil -e alguém saísse pelas ruas gritando: o casamento foi adiado, o casamento foi adiado!

O segundo erro factual: a proposta de data não veio do chanceler alemão Helmut Kohl, mas sim do primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti.

A interpretação errônea: não se adiou nada, acelerou-se o processo. Para a unificação ser completa e chegar finalmente à união política -quando se prevê até a eleição do presidente da Europa-será necessária a paridade das moedas. Banco Central comum e, por fim, a moeda única. Ela já tem nome, ECU, sigla de European Currency Unity. Os líderes europeus não haviam chegado a acordo sobre esses pontos por causa da pressão contrária da madame Thatcher, a primeira-ministra britânica. Nem se esperava fixação de data nessa cúpula de Roma. A Itália, na presidência do Conselho Europeu, surpreendeu a todos com a proposta. Outra surpresa veio do fato dos onze líderes isolarem madame Thatcher. Pela primeira vez na história das cúpulas européias Thatcher não conseguiu travar a história.

A reincidência do erro: na terça-feira os leitores foram brindados com página inteira dedica ao caso "adiamento". Na primeira página, título insistia no erro da véspera: "União adiada expõe divergências". O título interno era pior porque lhe faltava base de apoio: "Adiamento eclipsa a euforia da Europa-92".

Na própria segunda-feira, em crítica interna, o ombudsman alertou para o erro. Em vez de retomar o assunto, pedir desculpas e colocar os pontos nos is, a Redação tentou explicar o inexplicável. Resultado ininteligível porque o leitor sequer sabia as razões de tanto espaço e tanta explicação. A Redação baseou sua argumentação em documento de reunião dos ministros da Economia dos países-membros da Comunidade. Conforme o correspondente em Milão, em junho, eles haviam sugerido o início da segunda fase da unificação para o mesmo dia da inauguração do grande mercado, o fatídico primeiro de janeiro de 1993. Ora, ministro da Economia não tem a força do chefe de Estado e de Governo, nem a competência da cúpula dos líderes -onde se decide o futuro da Europa e onde se trava batalha encarniçada contra Thatcher. Ela bloqueia tudo e não abre mão de sua autoridade sobre a libra. Isso lhe permite, em última instância, manter sob controle a inflação na Grã-Bretanha. Sem a dama de ferro a Europa provavelmente já estaria unificada.

Os erros foram se acumulando. Além de não mostrar em nenhuma linha -a não ser na afirmação falsa da manchete-onde aparece a tal "eclipse" da euforia, o jornal pinçou afirmações desconexas de dois jornais ("El País" e "Le Monde") e omitiu título do "Financial Times", tudo na tentativa descontrolada de justificar a tese maluca do adiamento.

Conforme a Folha, "El País" disse que o adiamento por um ano do início da implementação da segunda fase do processo representa vitória da estratégia política defendida pela Espanha. Não se contou que "El País" se referia à proposta de seu ministro da Economia. O golpe fatal contra a tese do adiamento não apareceu e estava no título da primeira página do "El País": "La CE decide que la unión europea es irreversible com la oposición de Thatcher".

O "Monde" ajuntou a Folha, notou "atraso razoável" no cronograma de implementação da moeda única. Não notou, não. Em artigo na página oito, o seu maior especialista econômico, o venerado Philippe Lemaitre, afirma que, de acordo com o presidente François Mitterrand, a conferência intergovernamental (a se realizar em dezembro) deverá "indicar um prazo razoável para a segunda etapa -quatro, cinco ou seis anos". Mitterrand sugeriu prazo e não notou atraso. Para reforçar sua tese falsa, a Folha traduziu a palavra "délai", prazo, por atraso, incabível no contexto. O mais chato, omitiu afirmações da abertura do editorial de primeira página do "Monde". Ao pé da letra: "Anunciada como a reunião de todos os perigos, a cúpula dos Doze em Roma, no último fim de semana, justifica, ao contrário, uma satisfação européia. Ela permitiu, malgrado as reservas da Grã-Bretanha, a fixação de uma nova baliza na rota da união econômica e monetária e de reafirmar com força a necessidade de uma união política". A manchete interna é inequívoca: "O Conselho Europeu fixou um calendário balizando um caminho em direção à união econômica e monetária".

No entender da Folha, o "Financial Times" noticiou que os 12 membros da Comunidade Européia decidiram "tocar violinos" em Roma, deixando para a posteridade os problemas prementes da questão dos subsídios à agricultura. Nova deformação para provar o improvável. A notícia principal sobre o assunto era outra. Na primeira página, o insuspeito diário inglês titula: "Comunidade Européia caminha rumo à união mais total ("fuller") sem apoio da Grã-Bretanha". O texto começa assim: "A comunidade européia realizou ontem inesperado progresso em direção à união política e monetária". Lá dentro o título não deixa dúvida: "Italianos conseguem um milagre europeu adiantando os relógios políticos".

A Folha de terça registra é verdade que "The Washington Post" anotou a decisão do Conselho Europeu como "avanço". Foi a única versão contrária à tese apresentada depois do jornal ter torcido as outras.
Em síntese, não existe órgão sério de comunicação na Europa, ou nas Américas, que tenha visto "adiamento" de qualquer coisa na decisão do Conselho Europeu -simplesmente porque nada foi adiado. A notícia é exatamente o inverso. Quando menos se esperava avançou-se no processo de unificação, sempre bombardeado por madame Thatcher. O quotidiano francês "Les Echos", especializado em economia, manchetou assim? "A CEE dá um grande passo em direção à moeda única". O prestigiado "La Republica", diário italiano, saudou a decisão na capa de terça-feira: "O barco Europa finalmente anda".

Existem outros detalhes jornalísticos merecedores de discussão. Como a oportunidade ou não de manchete para o assunto. A rigor, dos jornais aqui citados, a decisão em Roma mereceu manchete apenas no diário econômico "Les Echos". Isso porque a coisa pode mudar (acelerar-se ainda mais, quem sabe?) na reunião intergovernamental prevista para 14 de dezembro em Roma. Ali serão tomadas outras decisões sobre a implantação da UEM, a União Econômica Monetária, o nome oficial da segunda etapa do plano de criação da Europa unida.

Em todo o caso, com base na última cúpula, o processo de união da Europa não só está firme como se acelera. Os atuais líderes estão conseguindo driblar os percalços e a data para o estopim da segunda etapa foi fixada para exatos 12 meses após a primeira etapa, a criação do grande mercado europeu.

RETRANCA
- Outro caso complicado na Folha da semana passada foi o da situação política do secretário-geral da Presidência da República, embaixador Marcos Coimbra.

- Na quarta-feira a seção Painel informava, sob título "A estrela desce", que a "força" de Coimbra era "apenas aparente". Ele estaria "com os dias contados no cargo". A nota seguinte acrescentava que o atual secretário da administração, João Santana, poderia suceder Coimbra.

-No mesmo dia, duas páginas adiante, texto da Sucursal de Brasília garantia em título: "Coimbra sai fortalecido da reunião ministerial".

-Manchete na página seguinte sustentava: "Presidente teme campanha contra Coimbra". Conforme texto assinado por Gilberto Dimenstein, diretor da Sucursal de Brasília, o presidente Collor "mostrou-se convencido em conversas com assessores de que há uma campanha para desestabilizar o secretário-geral da Presidência". O objetivo final seria o de atingir o próprio presidente "vinculando-o ao caso Vasp-Petrobrás para desgastar sua imagem". Coimbra, como se sabe, é cunhado de Collor e telefonou para o ex-presidente da Petrobrás interferindo a favor do empréstimo para a Vasp -considerado negócio "inaceitável" por comissão oficial.

-A leitura das três informações concomitantes -a estrela se apagando do Painel, o reforço da estrela na página A-6 e a campanha contra a estrela detectada por Collor na página A-7-permite várias conjecturas. A saber:
-Primeira: se o dois textos que vieram da Sucursal de Brasília estiverem certos então a tal "campanha" contra Coimbra começou no próprio Painel.

-Segunda: se o Painel estiver certo, então os dois textos da Sucursal de Brasília estão completamente errados e sequer mereciam publicação.

-Terceira: tanto o Painel quanto a Sucursal estariam certos. Cada um obteve informações de determinado "lobby" do governo e as reproduziu.

-Se a terceira conjectura estiver certa então faltou coordenação editorial, faltou transparência ao noticiário, faltou contar ao leitor toda a realidade dos bastidores no Planalto. Não há sentido em reproduzir notícias dos "lobbies" sem desnudá-los. Jornalista não existe para ser subserviente às fontes, mas para informar o leitor. Se há campanha no governo contra Coimbra, e consequentemente movimento contrário, então se dê nome aos bois, todos os bois.

- Na quinta-feira realizou-se curiosa ginástica editorial para resolver o problema surgido na véspera. O Painel falou do "baixo astral" de Coimbra e sustentou descontentamento do presidente com o desempenho do cunhado. Texto assinado por Dimenstein desdizia parte do que fora dito em títulos e abertura de textos no dia anterior. O novo enunciado, "Coimbra pode deixar cargo ainda este ano", seguiu na linha de informação inicial do Painel. Tudo, como sempre, baseado em informação de assessores.

-O leitor não é bobo. Ficou evidente no dia anterior a existência de ao menos dois "lobbies": um contra Coimbra e outro pró-Coimbra. Quem são todas essas personagens, porque fazem isso, quais interesses estão por trás, qual é o jogo de poder? São perguntas que merecem resposta. Dimenstein adiantou, na quarta, dois nomes pró-Coimbra: Cláudio Vieira e Pedro Paulo Leoni Ramos. Avançou alguma coisa ao reproduzir opiniões existentes no governo segundo as quais a demissão do cunhado ajudaria a melhorar a imagem do governo Collor. No entanto, o leitor merece mais. Principalmente do jornal que se diz de rabo preso com o leitor.


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