Folha de S. Paulo


Sobre a idiotia da subjetividade

Na quinta-feira, 12 de julho de 1990, um comando da Polícia Civil carioca invadiu o Paraguai, prendeu três brasileiros apontados como sequestradores acabou sendo preso pela policia paraguaia juntamente com uma equipe da Rede Globo. No dia seguinte, todos estavam de volta ao Brasil, e os acusados presos.

O caso repercutiu porque envolveu a invasão deum país vizinho e o incidente diplomático poderia ter sido ainda mais grave se as autoridades do Paraguai fossem menos compreendidos. A imprensa teve uma grande noticia, daquelas sensacionais. Os suspeitos foram presos e respondem a processo judicial. Dois deles são acusados de pertencer ao comando das quadrilhas: Nilo Cunha da Silva, o "professor" , e Alberto Salustiano Borges, o "Chocolate".

Quando a operação acabou, no sábado, ela apareceu nas capas de praticamente todos os jornais do país. "Polícia traz do Paraguai o comando dos sequestros" ("Jornal do Brasil") ; "Paraguai devolve sequestradores e policiais presos" ("O Estado de S.Paulo"); "Sequestros: quadrilhas agora estão sem comando" ("O Globo").

Só esta Folha não entendeu por inteiro oacontecido: "Clandestina, a política do RJ age no Paraguai, dizia o pequeno título de primeira página. Aquilo que foi considerado pelo jornal uma "trapalhada", a entrada dos policiais brasileiros no país vizinho e sua detenção junto com os prisioneiros acabou mais destacado do que uma das partes determinantes na notícia: a prisão dos suspeitos.

Palmas, sem dúvida, para a preocupação moral e política. Porém, ao eleger a questão diplomática em título na capa e em página interna ("Policiais do Rio invadem o Paraguai, acabam detidos e são expulsos dois país", a título em Cidades), a Folha deixou em segundo plano a prisão dos acusados pelo comando de sequestros, os fins não justificam os meios, pretendeu frisar o jornal.

Mas o movimento da notícia, nesse caso, não deixa dúvidas. Equivocada diplomaticamente, a operação acabou dando certo. Trata-se de uma idiota da subjetividade não considerar a prisão dos acusados o ponto principal - a invasão ilegal foi o estopim. Há maneiras e maneiras de se destacar essa notícia sem descartar seu lado mais importante, o da prisão efetivada. O "lead" da reportagem principal da Folha sobre o caso tropeça ao começar com apenas parte da informação: "O governo paraguaio considerou invasão de território e ato de pirataria a ação de nove policiais da Divisão Anti-Sequestro da polícia do Rio que foram ao Paraguai prender três sequestradores ..."

Nem mesmo esta Folha, em três episódios semelhantes (bem guardadas as proporções) deixo de destacar o mais relevante. Quando, em maio de 1960, um comando israelense invadiu a Argentina e capturou o nazista Adolf Eichmann, o título era inequívoco: "A besta está acorrentada: telegrafaram a Bem Gurion os captores de Eichmann". Dezesseis anos depois Israel voltou a invadir um país, a Uganda, para liberar reféns mantidos presos por sequestradores palestinos dentro de um avião da Air France. E a sub-manchete destacava: "Força de Israel liberta reféns". Em abril de 1980, os EUA quebraram a cara na operação de resgate dos reféns na embaixada americana em Teerã. A manchete afirmava de fora a fora: "Malogra operação-resgate no Irã".

O jornal possui recursos para demonstrar ao leitor sua indignação ante atos ilegais e de pirataria. Tem os editoriais, textos opinativos, etc. Mas, ao escolher a pirataria como destaque, como título e abertura do noticiário, instrumentalizou o material jornalístico - brigou com a notícia como se costuma dizer.

Veja o exemplo do "O Estado", que também discorda também radicalmente dos métodos da polícia carioca. No entanto, a discordância não contaminou a provável objetividade da notícia. No sábado, texto da primeira página do principal concorrente da Folha começava assim: "Agentes paraguaios e policiais federais prenderam na quinta-feira, no aeroporto de Assunção, no Paraguai, os três sequestradores..." Mais adiante informava que policiais civis do Rio "invadiram o Paraguai" e também foram detidos.

No seu principal editorial. "Polícia fora da Lei", três dias depois "O Estado" alertou naquele centenário estilão admoestativo: "A ação dos policiais fluminenses no Paraguai é reveladora, mais do que qualquer outra coisa, de que tínhamos razão quando dizíamos que não existe Estado no Rio de Janeiro, onde a lei foi subvertida."

Teóricos de comunicações gastam toneladas de papel para discutir a objetividade no jornalismo. O "Manual Geral da Redação" da Folha é taxativo a respeito. "Não existe objetividade em jornalismo. Ao redigir um texto em e editá-lo, o jornalista toma uma série de decisões que são em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções. "O verbete vai adiante: isso não o exime, porém , da obrigação de procurar ser o mais objetivo possível".

Ao realçar apenas um lado pirata da operação, desprezou-se a busca possível de uma certa objetividade. Mais adiante, o que é pior, a Folha não levou a sério sua própria opinião sobre o caso. Deixou de dar ênfase às declarações do ministro das Relações Exteriores do Brasil, Francisco Rezek, quando esse passou um sabão, em público, no governo carioca. Escondeu as duras afirmações de Rezek num pé de página, na última quarta-feira.

"Não há justificativa para uma ação policial em território estrangeiro', disse ele. Levando em conta o tratamento que a Folha deu para esse noticiário, as declarações de Rezek mereciam, no mínimo, manchete de página. Não o foram. Tenho lógica?

RETRANCA

Esta Folha já teve outro crítico regular da imprensa além de Alberto Dines (na década de 70) e deste ombudsman. Aconteceu na então "Folha da Noite". De agosto de 1950 até agosto de 1954, o jornalista e escritor carioca Gondin da Fonseca assinou diariamente uma coluna - "Imprensa em Revista" - onde desancava jornais e medalhões da época.

- Manuel José Gondin da Fonseca (1899-1977) foi um sucesso. Seus livros. "Senhor Deus dos Desgraçados", "Biografia do Jornalismo Carioca", "Histórias de João Miudinho", entre outros, venderam quase um milhão de exemplares. Patriota, dirigiu "O Semanário", jornal nacionalista extinto em 64, quando Gondin caiu no esquecimento.

- Sua crítica diária da imprensa era implacável. "escrevia pouco e dizia muito", define Júlio Abramczyk, o redator-médico da Folha. Ele se lembra bem da coluna e alertou o ombudsman para o antecessor.

- Assis Chateubrind, o "Chatô" dos Diários Associados, era um de seus alvos prediletos. "Jesus! Como o Chatô escreve mal. Cheio de erros de sintaxe, de cacófatos. Olhem para isto: 'Mamo', diz ele sem querer. E mama mesmo. É um mamarracho insaciável!"

- Gondin atacava sem cerimônia. Sobre Afonso Arinos de Mello Franco: "Este Afonsinho é bom rapaz mas tem a mania das letras." Austregésilo de Athayde: "Não fede nem cheira e sempre fez questão de não feder nem cheirar... Vive e escreve para o necrológico." Plínio Salgado: "Tratar o Plínio Salgando de senhor já é desaforo." Carlos Lacerda: "Carlitos Lacerda". Juscelino Kubitschek: "Belo Horizonte é uma cidade ocupada. Mandam ali quatro companhias estrangeiras e o Cubicheque funciona como capataz. O rapaz não me parece mau. Os patrões é que são exigentes.

- Jânio Quadros processou-o por calúnia quando prefeito de São Paulo pela primeira vez. Gondin defendeu-se: "Não há razão para o sr. Jânio Quadros processar-me pois o que eu disse na "Folha da Noite" não tem base para calúnia. Afirmei que ele é um palhaço, troca-tintas, demagogo e traidor de São Paulo além de mistagogo. (...) Ele teria para processar-me por calúnia se eu houvesse declarado que ele é um grande prefeito, em patriota ou mesmo um realizador.

- Na "Folha da Manhã" se encontra também em perfil de Gondin, escrito em março de 54 pelo repórter José Tavares de Miranda, o célebre Tavares de Miaranda da coluna social. Além da biografia, Tavares inclui texto que nada deve ao "clip" da Revista' hoje. Segundo os "Traços de Identidade", Gondin tinha 1,78 m, calçada 41, colarinho 41, pesava 80 quilos, comia de tudo menos doce, não fumava, gostava de beber, acreditava em fantasmas, amava a poesia, Beethoven, achava Camilo Castelo Branco o maior prosador da língua, "talvez do mundo" e seu livro de cabeceira era o "D. Quixote".

- Na última coluna, publicada na segunda página da "Folha da Noite" um dia depois do suicídio de Getúlio Vargas (em 24 de agosto de 1954), Gondim se despedia com uma nota interessante: "O Brasil não será salvo por demagogos, nem por tabelas palavras, mas por um homem honesto e sabedor, com coragem de enfrentar a impopularidade e diminuir orçamento, fechar autarquias, despovar ministérios, abolir todas as vendas a prazo e tomar outras medidas duras". Quer a "profecia" se realize ou não, o chato é que os males continuam os mesmos.


Endereço da página: