Folha de S. Paulo


Sobre propagações, chutes e micos

Quem leu os quatro maiores jornais do país na terça-feira e se achou bem informado sobre a "conversa" do presidente Fernando Collor com o navegador Amir Klink, pelo rádio, pode ser considerar ludibriado. Eles deram apenas parte da notícia. O episódio revela o quanto nossa grande imprensa está longe da apuração rigorosa de fatos banais - o que me leva a pensar, então, sobre quanta besteira os leitores engolem sem sabe.

A assessoria de comunicação do governo preparou em detalhes toda a operação do diálogo entre Collor, acampado numa fazenda no Pantanal, e Amir Klink, estacionado em seu barco na Antártida. Tudo foi combinado antes com Klink. Nada estava fora de lugar, conforme me assegurou Irineu Tamanini, do Departamento de Comunicação da Presidência da República. A coisa só não deu certo na hora certa.

Na segunda-feira, no momento exato. Collor pegou o microfone e fez seu discurso elogiando o "navegador solitário". Reportando-se ao Dia Mundial do Meio-ambiente, agradeceu a Klink pelo trabalho "em prol da causa ambiental". No entanto, naquele momento, a propagação começou a cair e Collor não ouviu a resposta de Klink. Este ouvia muito bem a voz do presidente. A resposta do navegador só era captada até o Rio Janeiro, onde foi gravada. Quem estava no Pantanal não ouviu. Collor fez sua parte e foi embora, sem esperar outro contato ou melhoria na comunicação. Depois, seus assessores distribuíram uma folha de papel com as duas falas. A "conversa", enquanto tal, não existiu.

Quem leu esta Folha foi informado do "contato radiofônico" entre Collor e Amir Klink. Uma legenda sob a foto onde o presidente aparecia falando ao rádio dizia que Collor "conversava" com o navegador. Os leitores do "Jornal do Brasil" souberam apenas que Collor disse alguma coisa para Klink, pois o diário carioca pinçou uma frase do discurso de 18 linhas do presidente - sem dizer se a frase foi ouvida. Quem estava com "O Globo" soube que a "conversa" com Amir Klink foi a "principal atividade" do primeiro dia do presidente do Pantanal. Sem tocar nos problemas de última hora, "O Globo" incluiu no noticiário um resumo do discurso do presidente e acrescentou: "Em resposta, Klink disse que o êxito de sua viagem se deve a dois fatores: tecnologia e respeito absoluto á (sic) natureza. "Se você leu esses três jornais e depois "O Estado", teve surpresa. O diário paulista afirmava que o contato fora interrompido, que Collor discursara, mas "não houve resposta da Antártida".

O jornal que mais se aproximou da realidade dos fatos foi "O Estado" - porque foi o único a noticiar que Klink não era ouvido no Pantanal. Omitiu que ele ouvia bem o presidente. O "Jornal do Brasil" ignorou tudo, inclusive o problema técnico, e aproveitou uma frase de Collor para realçar o "pacote ecológico" do governo. A Folha deu conta de uma "conversa" inexistente e o "Globo" idem, ao montar seu texto com uma fala verdadeira e um resposta que ninguém no Pantanal conseguiu escutar.

Você pode se perguntar se tudo isso tinha importância, era "noticia" etc. São aspectos bastante discutíveis. Mas o preocupante, no caso, é a maneira como se apura e transmite informações. Os leitores engoliram dados parciais sobre a atividade do presidente da República. Dados, em alguns casos, inverídicos. Não foi problema de espaço, porque todo o acontecido poderia ser sintetizado em poucas palavras. E mais, os jornalistas lêem os produtos dos concorrentes. Viram "O Estado", onde se informou sobre a interrupção do contato.

Pois nenhum dos diários se deu ao trabalho de voltar ao assunto e dar explicações, contar o ocorrido. Nem mesmo "O Estado", que mais se aproximou da realidade dos fatos. Se os jornais tratam assim uma conversa do presidente que não existiu, imaginem, repito, como devem tratar as conversas e fatos reais.

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Imprecisão e apuração negligente de dados não é privilégio da imprensa brasileira. O "The New York Times", jornal americano dos mais influentes no mundo, publicou no dia 15 de maio uma destacada reportagem sobre a reforma administrativa do governo Collor. O texto, assinado pelo correspondente James Brooke, trazia declarações de João Santana, secretário da Administração.
No sexto parágrafo, pode-se ler que até aquela data, "15 mil funcionários civis foram cortados dentro de um plano, previsto para 18 de junho, de demissão de mais 360 mil". Temos aí um chute e uma informação incorreta. Naquela data, nem mesmo o governo sabia ao certo quantos funcionários havia colocado "em disponibilidade". E não eram 15 mil, mas apenas 2.633, conforme a Secretaria da Administração divulgou depois, em 28 de maio. A incorreção vem na afirmação de que o corte de 360 mil servidores será "a mais". Não. 360 mil é o número total de cortes prometido pelo governo. Uma meta, aliás, impossível de ser cumprida na data prometida - como se verá daqui a oito dias.

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Recebi no final de maio um telefonema do jornalista Alexandre Machado, 44 anos, 26 de jornalismo, o comandante do finado "Vamos Sair da Crise", na Gazeta, um dos melhores programas de debates da televisão brasileira. Ele reclamava de crítica publicada num domingo, 13 de maio, pela Ilustrada. Estava consternado com a ligeireza com a qual o crítico Luís Antônio Giron, 30 anos, 7 de jornalismo, tratava artistas e personalidades. Ele criou o fato de o crítico ter rotulado a atriz Mika Lins de "mico sexual" e Ipojuca Pontes de "mico cultural". Solicitava discussão do papel e dos limites da crítica. Perguntava se aquilo era crítica ou brincadeira de salão.

Mandei relatório para a direção do jornal, como faço com as reclamações pertinentes. Obtive em reposta um relatório de Girion, onde ele defendia o uso da "ironia". Repassei o relatório para Machado. Ele me respondeu dizendo que as pessoas não devem ser utilizadas como forma de escárnio e deboche e convidava a chefia de Redação a se posicionar sobre os critérios jornalísticos de chamar alguém de "mico preto" e "pé-frio".

O secretário de Redação responsável pela parte de edição da Folha Alon Feuerwerker, despachou reconhecendo o direito de Machado discordar das opiniões Giron, as quais não lhe cabe discutir, "já que se situam nos limites do aceitável, desde que editadas como opiniões". Giron também retornou ao debate e sugeriu que o assunto viesse a público porque seria "mais produtivo e não teria o tom intimidatório de uma correspondência entre jornalistas graduados".

Machado toca num ponto fundamental em relação à crítica em geral. Pretende discutir os limites que separam a crítica do deboche, a irreverência da ofensa e a liberdade da irresponsabilidade. Conta ter aprendido com Roberto Muller, da "Gazeta Mercantil", que "a importância da liberdade de imprensa é assegurar ao leitor o acesso à informação, e não permitir ao jornalista escrever o que bem entende". Levanta questão ética, diferente da mera discussão de uma opinião, algo que não discuto nesta coluna, por principio - só quando as opiniões estão embasadas em fatos irreais ou distorcidos. Machado pergunta apenas o que é que sustenta o deboche pelo deboche. Ele mesmo sintetiza sua questão:

"Protesto pela utilização da imagem pública de pessoas para brincadeiras de salão, ou debate ou vinganças pessoais. Não contexto a crítica vinda de profissionais de boa ou má catadura. Protesto contra a forma abusada com que foram tratadas pessoas como o senhor Ipojuca Pontes - com quem não tenho relações especiais - e a atriz Mika Lima - pessoa que respeito como atriz e como amiga. Fico perplexo pelo fato de um jornal admitir que se use uma tribuna importante para veicular que a atriz "tem fama de pé-frio" e que fez o filme "O Quinto Macaco", em Parati, sobre símios. O Giron esqueceu de informar que Mika, qualificada como "mico sexual" (que grosseria!), trabalhou em O Quinto Macaco com o ator Bem Kingsley, um dos maiores atores do mundo, aquele mesmo que personificou Gandhi. Certamente se Giron trabalhasse na "Folha de Bombaim", teria qualificado mr. Kingsley de mico hindu".

Giron se explica: "A crítica - que fiz sobre a novela 'Mico Preto' procurou analisar, de maneira bem-humorada, o fenômeno nascente da 'cultura do mico'. Lançada pelo secretário Ipojuca Pontes e sugerida da novela. O quadro da crítica remete a vários 'micos', personalidades e situações que se enquadram na figura da carta a ser passada adiante, do 'pé-frio'. Ipojuca é bem isso, um protetor ambivalente dos barnabés que diz querer destruir. No caso de Mika Lins, valeram duas situações: o fato de ela participar de produções desastradas em termos de audiência e o trocadilho com o nome 'Mika', além de sua participação no filme 'O Quinto Macaco'. Não houve preconceito. Apenas humor.

Se trago a público o debate, é para ampliar a discussão ética sobre os limites da crítica, do bom gosto e do mau gosto no jornalismo. Alexandre Machado botou o dedo na ferida e Giron, se não administrar bem seu reconhecido talento, corre o risco de virar, ele sim, o mico da crítica.


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