Folha de S. Paulo


Sobre as carroças e o agregado José Dias

Ocupou as manchetes da grande imprensa na quarta-feira a disposição do governo Collor em reformular o setor automobilístico no Brasil. Desde que o seu produto foi definido como "carroça" pelo então presidente eleito, em viagem na Europa, que a imprensa registra, com a objetividade possível, todas as investidas contra a indústria automobilística instalada no Brasil. Quando o presidente fala...

Situação constrangedora. O lobby das montadoras estrangeiras é considerado um dos mais potentes neste país. Uma vez impulsionados pela palavra de um presidente aparentemente disposto a andar em carros mais modernos, confortáveis e seguros, os jornais não podem deixar de registrar os fatos daí decorrentes. Mas essa mesma imprensa que agora dá manchetes garrafais, expondo em público o cartel das montadoras, é em grande parte responsável pela sucata impingida por esse cartel ao consumidor brasileiro.

É dificilmente ver na grande imprensa brasileira - em profundidade, riqueza de detalhes e constância - uma comparação dos automóveis produzidos no Brasil com seus similares ou concorrentes estrangeiros. Comparação do comparável, excetuando as maravilhas da informática que as montadoras reclamam não possuir aqui. O nível de condescendência dessa imprensa chega ao ponto de jornais independentes, como esta Folha, registrarem sem nenhuma análise crítica declarações questionáveis (para dizer o menos) do sr. Jacy Mendonça, presidente da Anfavea (a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos). "Sempre apoiaremos a vinda de quantos quiserem se instalar no pais", afirmou ele num dia, para pedir liberação de preços no outro. Ou então, quando se espantou com a palavra ágio: "Não sei disso".

Sempre disposto a escrever para a seção de cartas, o ser. Jacy Mendonça até hoje não explicou (e ninguém foi cobrar) como é que os similares do Santana e do Monza Classic fabricados no Japão - carregados da mais sofisticada das tecnologias - conseguem ser mais baratos que os fabricantes no Brasil, descontando os impostos cobrados em ambos os países . dois leitores mandaram cartas expondo os valores e cobrando resposta, no Painel do Leitor. Nada. Ontem se soube (em "O Estado de S.Paulo") que o Santana fabricado no Japão vai custar 4 mil dólares menos que o "nacional", mesmo taxado a 85%!

Sem falar na comparação dos modelos e da assistência técnica pós-venda. Nova omissão dos jornais e, em decorrência, a manutenção de uma falsa idéia da indústria automobilística internacional sediada no Brasil. Não é difícil verificar, empiricamente, a durabilidade real da lataria de qualquer carro estrangeiro e comparar com a dita nacional, Nem sua espessura. Basta apoiar com força o dedo na porta de qualquer carro "brasileiro" e repetir o gesto num carro estrangeiro. Qualquer um sente na ponta dos dedos a fragilidade do tão "caro" aço nacional. E o consumo de gasolina? É melhor nem falar.

Um teste de assistência pós-venda, por exemplo, colocaria as montadoras instaladas no Brasil em situação ridícula frente às suas matrizes e concorrentes no exterior. Quando eu era correspondente da Folha na França, há menos de um ano, eu tinha um Peugeot 205 (um carro pequeno, equivalente ao Voyage ou Kadet), modelo 1986, escolhido e comparado em menos de duas horas numa revendedora Peugeot, com um ano de garantia, coisa normal. O carro ficou sem bateria dois meses depois. Bastou telefonar para o serviço 24 horas da própria Peugeour que, em 15 minutos, um guincho estava à porta para trocar a bateria sem nada cobrar - porque estava na garantia. No brasil, isso já aconteceu com alguém, com carro de segunda mão?

O governo liberou a importação de carros estrangeiros. Ainda vai demorar um pouco para grande parte dos brasileiros fazer uma comparação que a imprensa deveria ter feito sistematicamente desde a abertura das portas para a indústria estrangeira, realizada por Juscelino Kubitschek. Não vai sobrar um item no qual os carros nacionais possam superar de longe os similares estrangeiros - a mão ser que reexportem para cá os carros fabricados aqui e que não foram adaptados para andar lá fora: fala-se em duas mil modificações só no Voyage.

Design, desempenho, barulho, segurança - tudo é pior. Não é por falta de vontade. Mesmo não superando a gasolina em consumo, esta mesma indústria soube inventar uma boa tecnologia para o uso do álcool. Porque foi pressionada pelo governo. É chato ver que a imprensa não teve participação nisso e agora assiste outras transformações porque um presidente destemido resolveu enfrentar um lobby potente.

É triste. Em relação aos cartéis e oligopólios (duas palavras popularizadas pelo governo Collor), à imprensa brasileira sempre se comportou como o agregado José Dias, de Machado de Assis. Aquele que "sabia opinar obedecendo".

RETRANCA

  • A revista "Isto É" da semana passada traz curiosa reportagem sobre "O Povo", um jornal de estilo popularesco que está ganhando espaço no Rio de Janeiro em cima do vazio deixado pelo jornal "O Dia".
  • Enquanto "O Povo" explora assuntos policiais e fotografias de cadáveres em ângulos impressionantes (cabeças decepadas, defuntos com buracos no rosto ou cachorros farejando a boca de pessoas mortas na Baixada Fluminense), "O Dia" tenta entrar num espaço mais nobre, na cola do "Jornal do Brasil".
  • Nesse esforço de melhoria do produto. "O Dia" criou até uma função embrionária de ombudsman. Contratou uma "editora de controle de qualidade", a jornada Magda de Almeida. Ela não investiga queixas de leitores nem tem coluna semanal. Mas faz uma rigorosa crítica interna das edições do jornal.
  • Morreu na sexta-feira o sr. José Olympio, considerado o maior editor deste país. Tinha 87 anos, morava no Rio e talvez por isso os dois principais jornais paulistas tenham relegado sua morte a um simples registro (como fez esta Folha) ou um singelo perfil (como fez "O Estado"). É o que se pode chamar de provincianismo. "O Globo" e o "Jornal do Brasil" destacaram a morte em suas capas. Os jornais paulistas não acharam tão importante o desaparecimento de um profissional que revelou na sua editora gente como Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos , Gilberto Freyre Murilo Mendes, Alceu de Amoroso Lima, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz... A lista é interminável.
  • A reportagem mais interessante da semana está em "O Estado de S.Paulo" e no "Jornal da Tarde". Foi publicada na sexta-feira e apresenta um projeto de governo preparado pela Escola Superior de Guerra (a ESG) que teria sido entregue ao então candidato Fernando Collor, em junho do ano passado. Muitas das medidas adotadas por Collor se parecem com as propostas da ESG. Ali previa té a transformação do SNI numa Secretaria de Assuntos Estratégicos.
  • A Folha não corrigiu um erro que cometeu na edição de terça-feira. Noticiou que um manifestante lançou duas de material inflamável "sobre o corpo embalsamado do líder da Revolução de 1917", o Lênin. De fato, houve um protesto em Moscou e um ativista lituano lançou fogo sobre o mausoléu de Lênin, na Praça Vermelho. Não podia ter atacado fogo na múmia de Lênin, porque ela está sendo reformada e o mausoléu que a guarda está fechado à visitação.
  • No mês de abril, a Folha admitiu 37 erros, a exata quantidade de "Erramos" publicada no jornal - contra 38 em março, 20 em fevereiro e 45 em janeiro. A editoria que mais tem mostrado seus erros ao leitor é a de cidades (14 em abril). Em segundo lugar vem a ilustrada (7) e em terceiro a política (5).

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