Folha de S. Paulo


Falso moralismo

A escritora francesa Marguarite Duras escreveu certa vez que não há jornalismo sem moral. Para ela, todo jornalista é um moralista a vigiar o mundo de perto. Ele não consegue fazer esse trabalho sem julgar aquilo que vê. Ela acrescenta também que a informação objetiva é um "logro" total. Está coberta de razão.

No Brasil, como sempre, as coisas são mais exageradas. O jornalismo caboclo está permeado de um moralismo simplório (que os marxistas ainda vivos definiriam como pequeno-burguês, os aristocratas emergentes como dor-de-cotovelo e os políticos experimentados como udenista) cujas consequências, ao contrário da análise honesta de Duras, são nefastas para o público leitor, depositário de todos os moralismos.

Essa falsa objetividade de grande parte dos textos de nossa imprensa quando noticia mordomias, quando denuncia alguém ou mesmo quando entra na seara do jornalismo policial ainda vai acabar referendando uma pseudomoral no jornalismo brasileiro cujos limites são estreitos e perversos.

Esta Folha brinda seus leitores, esta semana, com vários exemplos de falsa objetividade. Eles acabaram tungando o leitor enquanto privilegiaram determinadas fontes de informações e mandaram outras para o inferno da culpa, sem lhes dar sequer o direito de serem ouvidas.

Veja o caso, publicado quarta-feira, do contrabando apreendido pela Polícia Federal nas lojas Tabaco Center, que ficam nos supermercados Eldorado.

O jornal reproduz na íntegra a versão da Polícia e declarações do supervisor da loja sem ouvir, sem dar o direito de defesa ao dono do estabelecimento (coisa que "O Estado de S.Paulo" faz, com equilíbrio). Inconscientemente, ou não, o que seria pior, a Folha reproduzir tudo o que a Polícia diz, como se fosse a verdade absoluta.

É assim que se age no terreno seguro do falso moralismo, Flagrante de contrabando é flagrante. Portanto fulano é contrabandista e ponto final. Não há quem proteste a não ser o próprio acusado. Mesmo assim, ele nem foi ouvido. O imprescindível "ouro lado" da notícia foi pro beleléu.

Passa-se dessa maneira com quase todo que o jornalista, investido como guardião da moral, avalia estar em desacordo com as regras de boa conduta reinantes. A semana que passou está cheia de exemplos semelhantes.

O deputado Paes de Andrade, presidente da Câmara dos Deputados, teria cinco carros e dez servidores públicos à sua disposição na "mansão" em Brasília (político não tem casa, tem mansão) e o jornal investigou o assunto. "Procurado pela Folha em Fortaleza até as 21h o deputado não foi encontrado", anotou a reportagem. Foi no dia seguinte (ontem) que o jornal conseguiu ouvi-lo para registrar seus argumentos. A Folha havia aplicado mecanicamente uma de suas normas internas, avisar o leitor que o personagem da notícia não foi encontrado para dar sua versão do caso. E o leitor teve de engolir a "investigação" como um produto final, pronto e acabado. Teve que esperar um dia para saber que Paes de Andrade admitia a existência de três dos cinco carros citados e prefere manter em funcionamento a casa com os dez servidores.

Deputados baianos aumentaram seus salários em 84,3% quando os assalariados do país terão aumento zero este mês. Escândalo evidente, pra que ouvir as razões dos deputados, pra que levar ao leitor a defesa deles? Não precisa e não foi feito. E a Folha deu a notícia sem o imprescindível "outro lado". A delegacia do consumidor resolveu indiciar um trotskista-petista (ex-presidente da Prodam, a empresa de processamento de dados da Prefeitura paulistana) por crime de peculato. Ele desviou dos cofres públicos NCz$ 45 mil em dezembro passado para levar manifestantes a Brasília. Pra que ouvi-lo se é crime mesmo?

O leitor também moralista, deve estar pensando que o ombudsman ficou louco e agora saí em defesa de empresários contrabandistas, políticos que torram o dinheiro público em mordomias e petistas que se aproveitam do contribuinte para financiar ilegalmente manifestações esquerdistas. Nada disso. Estou defendendo o seu direito, leitor, de saber o que é que esses acusados têm a dizer, um principio corriqueiro do jornalismo. Nem é o caso de pedir Justiça. Verdade, Lisura, estes termos com letras maísculas que dizem tudo e muito pouco. Solicito ao jornal apenas singelo ato que deveria ser a mola mestra de qualquer jornalista.

Fulano é acusado de alguma falcatrua? Então ouça-se o que ele tem a dizer. Jornalista em missão profissional tem o direito e o dever de procurar este fulano esteja onde estiver na hora que for e deve tentar com ele a qualquer custo. Uma vez esgotadas todas as possibilidades, aí sim o leitor deve ser informado que a pessoa não foi encontrada ou que não quis dar declarações.

Se a objetividade é um "logro", a apresentação das diversas versões de um fato é uma forma, a única forma de evitar que este "logro" seja fato consumado. Os quase dois mil anos de dominação judaico-cristã impelem naturalmente a decantada "opinião pública" para julgamentos precoces, baseados na moral reinante, na noção da culpa. Não cabe aos jornalistas nem aos jornais fazerem desse moralismo o apanágio da notícia objetiva. Por pior que sejam (para ficar no maniqueísmo pueril) os contrabandistas e os políticos corruptos ele merecem ser ouvidos e o leitor precisa saber o que tem a dizer. Para julgar com todos os elementos do fato nas mãos. Ou melhor na cabeça.

RETRANCA

  • Não é a primeira vez que recebo carta de leitores do Paraná que comparam as edições do Painel desta Folha com a edição da mesma coluna comprada e reproduzida em Curitiba pelo cotidiano "Gazeta do Povo". As notas negativas em relação ao governador do Paraná, Álvaro Dias, não parecem no "Painel" da "Gazeta do Povo". O último caso data de 16 de abril (segunda-feira) quando a Folha noticiou que José Richa (ex-governador do Parana) está reunindo documento contra Álvaro Dias e pretende provar seu envolvimentos no rombo do Banco do Estado do Paraná.
  • A "Gazeta do Povo", por intermédio do seu chefe de reportagem, jornalista Antonio Nogueira, 48, explica que realmente o jornal corta algumas notas porque é norma interna "evitar brigas de terceiros". Ele diz que "muitas" dessas notas parecem notícias de "cobras mandadas", de "inimigos" do governador. "Nós ficamos de fora - diz -, preferimos ficar neutros."
  • Quem mandou carta para o ombudsman com o recorte do Painel censurado foi o leitor René Marcio Ruischel, de Curitiba. Segundo ele, desde a posse do atual governador a imprensa paranaense passa por "um processo de rígido controle". Ele se diz surpreendido que ela "assuma tal postura, pacífica e passional, enquanto a sociedade como um todo já começou a perceber que por trás desta novela há um forte odor de maracutaia".
  • Já escrevi nesta coluna que jornal sério não publica planos. A Folha discorda. Caso estivesse de acordo não teria feito o que fez na terça-feira. "Erundina promete 51 mil empregos sem saber de onde vem o dinheiro" era a manchete da capa do caderno de Cidades. O título, aliás, se mostrava desnecessariamente rigoroso com a prefeita de São Paulo uma vez que a própria reportagem anotava que ela espera dinheiro até o governo federal.
  • A rigor, do ponto de vista jornalístico, os planos da prefeita não mereciam o destaque que tiveram na capa de Cidades. São "planos" e, se o jornal insiste em registrá-los, que o faça sem estardalhaço das notícias prontas e acabadas, que o faça com discrição. Somente o acompanhamento diário, constante e metódico da execução dos planos mostra se eles dão certo. Neste sentido, tanto o título quanto o texto pseudo-crítico em relação à prefeita pouco fazem par esclarecer os leitores. Serviram de material de propaganda política do PT.
  • Não só para o PT. Esta Folha andou fazendo também propaganda política para o governo Collor - sem o distanciamento crítico que se requer de qualquer jornal independente. Refiro-me às muitas vezes que a Folha referiu-se acriticamente à "política de austeridade" do novo governo sem alertar os leitores para os números reais dos cortes nos gastos governamentais. Isto vinha acontecendo até a edição de 16 de abril, no noticiário. De lá pra cá a Folha resolveu checar melhor os dados e conseguiu uma boa manchete na quarta-feira, "Collor corta menos que o prometido", quando apontou que o governo tinha dispensado apenas 2.479 funcionários públicos do total de 28 mil que havia prometido. No entanto, por mais conclusivas que tenham sido as informações sobre os pequenos cortes de despesas, o jornal, no mesmo dia, deixou de ouvir as explicações do "outro lado", da Secretaria de Administração do governo, como manda o seu próprio "Manual" e cujo assunto é objeto desta coluna hoje.
  • Sobre os limites do ombudsman, alguns leitores insistem pra que eu resolva casos administrativos, ligados a eventuais problemas com assinaturas, atraso na entrega da agenda ecológica, linhas de telefone ocupadas na Folha Informações etc. Como já expliquei, sou o ombudsman da redação da Folha e não da Empresa Folha da Manhã S/A, que edita a Folha. Assim, só posso encaminhar os casos jornalísticos, as queixas em, relação à parte editorial da Folha. Para as outras reclamações os assinantes têm à sua disposição nove números de telefones, todos diariamente anotados na terceira página deste jornal.

Endereço da página: