Folha de S. Paulo


Fogo cruzado

Nunca fui tão solicitado para defender causas opostas como agora. "Você é nosso advogado e por isso não pode permitir que a Folha continue atacando o Collor dessa maneira", disse um leitor. "Como meu representante, não deixe a Folha abaixar a cabeça. Diga para denunciarem mais ainda esse esbirro de Mussolini", suplicava outro, em seguida. Cada um exigia minha intervenção para sua causa.

Boa parte dos leitores ficou chateada com a atitude da Folha no caso da invasão da Polícia Federal da qual foi vítima na semana passada. Atendi mais casos de protesto do que de solidariedade. Também é óbvio que ao expor a Folha publicamente às críticas, este ombudsman vire o catalisador natural de protestos.

Se há uma palavra para definir o sentimento comum entre os queixosos, ela se traduz por "exagero". Exagero referente às sucessivas edições repercutindo a invasão. Ninguém achou exagerada a edição de sábado quando foi denunciado o caso. As edições seguintes chatearam mais. "A Folha se igualou, desceu ao nível da polícia", afirmou um professor universitário.

Ligaram donas de casa, aposentados, profissionais liberais (advogados, engenheiros, analistas), funcionários públicos, micro-empresários, gente de várias partes do Brasil. "A reação do jornal parece coisa de mulher histérica", disse uma senhora. "Passional", explodiu um senhor. "O jornal era petista e agora virou terrorista", lançou uma comerciante de moda. "Vocês estão desestabilizando o plano", lamentou um leitor do interior de São Paulo.

Do ponto de vista da história recente do jornal, acusar Collor de autoritário nada tem de novo. Reportagem publicada no Natal ("Psicanalistas vêm traços de autoritarismo em Collor") informava que, para a psiquiatria, Collor "não tem demonstrado distúrbios psíquicos". Conforme três psicanalistas, no entanto, ele teria "perfil autoritário" e, em condições propícias, "poderia vir a se tornar um ditador". O novo, no caso, foi a intensidade do ataque. Pesou muito na avaliação de leitores a foto de Collor envergando uniforme de campanha do Exército publicada na primeira página: "Mussolini do terceiro mundo".

Difícil manter o equilíbrio num momento desses. Ferido por uma arbitrariedade, algo que nem era lei, o jornal gastou boa parte de suas edições para dedicar-se a si mesmo. A indisposição invadiu até as páginas de Esportes. Teria sido o "pé frio" de Collor que impediu a vitória de Ayrton Senna em Interlagos. As outras notícias foram para segundo plano. Isso durou até a edição de terça-feira, quando a manchete dava conta do recuo de Collor em relação às medidas punitivas. Só na quarta-feira o ímpeto se arrefeceu e o mundo voltou a girar normalmente sobre seu próprio eixo.

"O jornal não foi muito narcisista?" me perguntou um estudante de jornalismo num debate terça-feira na Universidade de Taubaté. "Não, o jornal é narcisista", frisei. Essa é uma das características mais marcantes da Folha. Ela se volta muito facilmente para si mesma. E quando sofre uma agressão do porte desta, então, não tinha como ficar quieta. Jornais conversadores (a Folha é liberal) também reagem assim. Lei da sobrevivência. Veja "O Estado de S.Paulo", por exemplo. Nunca deixará seu leitor esquecer que foi ocupado pela ditadura de Getúlio Vargas ou da brava censura sofrida no governo militar. No que faz bem.

No fundo, tanto Collor quanto a Folha são muito parecidos. Esta semelhança -que não inclui a tradicional posição crítica do jornal-ajuda a separá-los. Como pólos iguais de dois imãs. Semelhantes no que? No estilo e na independência.

O estilo comum é aquele de determinação, do faço e aconteço, da necessidade de rapidez, do sou mais eu, da certeza de que seu umbigo é o centro do universo. A independência do Folha começa pela sua saúde financeira e prossegue no total descompromisso com as forças políticas, seja elas quais forem. A de Collor, até agora, tem sido de desprezo às "elites", isolamente em relação aos empresários e às forças políticas tradicionais. Collor tem seu mandato delegado por 35 milhões de votos. Guardadas as proporções, a Folha tem seu mandato jornalístico delegado pelos milhares de leitores que a julgam diariamente ao compra-la na banca ou na renovação da assinatura. Ambos só tem contas a prestar ao seu eleitorado (Collor) ou leitorado (Folha). Os dois se mostram muito ciosos disso.

Não adianta, por isso mesmo, o governo tentar explicar em todos os canais de televisão que a "inspeção" na Folha foi "rotina". Porque não o foi. Uma fiscalização acompanhada de policiais armados a invadir salas, ameaçar recepcionistas de prisão e arrastar uma secretária para a delegacia não é "normal". As intenções retaliatórias às críticas feitas por este jornal a Collor durante a campanha são evidentes. Levou troco a altura.

Leitores sustentam que a Folha foi além do necessário. Procede a ponderação. O jornal realmente virou o centro do mundo. Ele foi a notícia dele mesmo em várias páginas e durante quatro dias. Se não fizesse assim, é preciso dizer, pouca gente ficaria sabendo o que realmente se passou. Os jornais cariocas e as grandes redes de televisão -com exceção única do SBT-deram a notícia de passagem, sem a menor ênfase. Na grande imprensa, só "Veja" e "O Estado de S.Paulo" demonstraram inequívoca indignação.

A "overdose", no caso, começou no domingo quando o jornal ampliou com uma lupa críticas que tinha abrigado em suas páginas durante a campanha eleitoral. O recuo de Collor -retirando as medidas punitivas-mostrou ao Brasil que as críticas do autoritarismo nascente tinham fundada razão. Até que ponto a Folha influenciou o recuo é algo difícil de medir. As acusações de inconstitucionalidade também vinham de outros lados, como do próprio jornal "O Estado" (que apoiou a candidatura Collor), dos juristas, do Congresso...

Mas a Folha teve do seu lado uma expressiva quantidade de leitores. A esmagadora maioria dos que a procuraram -e não ao ombudsman-para dar opinião sobre o caso. As mensagens foram centralizadas pelo Painel do Leitor. Ali se contabilizava na sexta-feira, 536 manifestações de solidariedade (telefonemas, cartas, telex, fax, telegramas) e 17 protestos. Acrescente-se a estes números os deste ombudsman. Foram 98 telefonemas de críticas contra 28 de solidariedade. Recebi também 25 cartas contra a Folha e 15 a favor. Isto totaliza 579 manifestações pró-Folha e 140 contra. Até sexta, o Painel do Leitor havia publicado 259 manifestações de apoio e apenas quatro de protesto.

RETRANCA

- Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda, telefona para reclamar de títulos. Ele acha absurdo um jornal do porte da Folha escrever na primeira página, como na sexta-feira: "Credores exigem que país pague os juros já". Ou no caderno economia: "Bancos gorçarão pagamento imediato de juros". Hoje, diz Bresser, "não acontece nada para os bancos internacionais se o Brasil deixar de pagar". Eles não têm condições de forçar nada, explica. Tem razão. O título revela ainda três coisas: subserviência, ingenuidade e sensacionalismo onde ele não existe desde o governo Sarney.

- Jornais e televisão estão negligenciando no acompanhamento da reforma administrativa do governo Collor. O "corte" de ministérios, por exemplo, não foi analisado em profundidade até agora. Será que a criação das secretarias de Estado não significa a manutenção de ministério disfarçados, com toda a sua estrutura?

- Muito gozada a comparação das manchetes de quinta-feira de dois jornais paulistas e irmãos, "O Estado" e "Jornal da Tarde". Ambas se referiam à ida de empresários até o gabinete do presidente Collor. "Virem-se, disse o presidente", escreveu o JT. "Empresas terão crédito para pagar salário", registrou "O Estado".

- A edição da Folha nesta quinta-feira deu um mergulho. O grande assunto era exatamente a reunião de Collor com os empresários. Este jornal publicou duas fotos do encontro de Collor com os 24 presidentes de federações estaduais das indústrias, mas registrou o evento em apenas dez linhas no pé da reportagem sobre os salários. Esta, optou por destacar sem a menor criticidade uma "sugestão" ilegal de um dos assessores da ministra Zélia -que as empresas negociassem com os trabalhadores o parcelamento e o pagamento em abril do restante da folha salarial.

- A Folha continua sem acertar na cobertura de casos policiais. Nem Patrícia Highsnith, a mais sofisticada escritora de romances policiais, previu requintes de crueldade como no assassinato da família Ikeda, no Mandaqui, em São Paulo. Comparado com o noticiário do "Jornal do Brasil", o da Folha é uma miséria. Exercitando um estilo pedregulhoso, esta Folha prefere dizer que o assassino "asfixiou" as vítimas no tanque quando simplesmente ele as afagou.

Faltam na Folha os detalhes que fazem do caso "o" caso policial. Confira no "Jornal do Brasil", em texto de Ricardo Kotscho: o responsável pela tragédia, confessou o assassino, é o vocalista do grupo de música A-há Morten Harket! O assassino afogou a menina e depois enfiou-lhe uma pastilha de protector na boca! "É assim: eu estou aqui conversando com o senhor e vejo uma imagem. Aí ataco... O aterro é uma ação que bloqueia as liberdades mentais, entende?" Esta e outras afirmações o ex-estudante Marco Antônio dos Santos fez o delegado e à imprensa. Os leitores da Folha foram obrigados a engolir na quinta-feira um texto burocratizado, comparável a relatórios anódinos.


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