Folha de S. Paulo


Truculência versus paciência

"Escalada de intimidações" foi o título do editorial desta Folha na quinta-feira. Já alertava para o processo de "aguçamento repressivo" registrado nos últimos dias.

O matutino "O Estado de S.Paulo" foi o primeiro a escrever em editorial, na terça-feira, que o país e os membros do Congresso Nacional precisavam tomar consciência de que "o presidente da República, lentamente, está subvertendo a ordem-jurídica e submetendo os cidadãos à vontade do Estado". O título: "A destruição da ordem jurídica".

A revista "Veja" deste domingo publica reportagem sobre a "truculência" policial. A revista também faz seu alerta. Pede que tudo no país seja feito dentro da legalidade, das leis vigentes, do sistema de divisão de Poderes, da liberdade crítica, do Estado de direito, que se respeite a Constituição. Esta Folha sentiu na sua casa na tarde de sexta-feira, a truculência policial. Foi um jornal que manteve independência total em relação à candidatura Collor. Foi o primeiro jornal a ser "visitado" pela polícia. Não é preciso dizer mais nada.

Não é somente a ordem jurídica que corre o risco de subversão. No que toca ao papel básico da imprensa -servir informação–, as coisas também estão ficando complicadas. Se exatidão é o melhor sinônimo para informação jornalística, então a coisa ficou preta. Não por truculência, mas por absoluta carência de didaticidade.

Independente do esforço de jornais, rádios e emissoras de televisão, poucas vezes se viu uma situação de tanta desinformação como nestes tempos de hiperpacote. Ninguém consegue se entender, definitivamente, sobre vários pontos das medidas que revolucionam a economia do país.

A cada dia aumenta o número de leitores que ligam -até para este ombudsman-com mais e mais dúvidas do que tinham antes. Eram os vinte por cento do fundo nominativo que opra podiam ser sacados ora não, era a conta conjunta do overnight cujo saque ninguém sabia como fazer, eram as contas atrasadas, os consórcios, as demissões, o tamanho da recessão, etc. etc. etc. Nunca se viu tanto espaço na imprensa, tanta explicação e tanta confusão junta. Quem se deu ao trabalho de ler as explicações diárias nesta Folha por exemplo, viu que o que era dito num dia era desdito no outro e reexplicado diferentemente num terceiro dia.

Um leitor de São Paulo me ligou na sexta-feira à noitinha para dizer que, com base numa reportagem publicada na capa do caderno Economia, ele e sua mulher tinham ido ao banco para exigir a liberação de quarenta por cento do over, vinte por cento para cada titular da conta conjunta. O banco recusou-se a liberar o dinheiro argumentando que não era bem assim. Eles mostraram o jornal e a coisa ficou para ser decidida na segunda-feira. O banco não sabia ao certo e nem tinha como provar seus argumentos.

Nesses momentos os jornais se revelam um gênero de primeira necessidade. Sua tarefa principal é destrinchar as medidas. O que está escrito num jornal fica registrado ali, pode ser lido e mostrado para outras pessoas. Funciona como prova. Se não estiver certo pode piorar situações, perpetuar equívocos.

Mas de quem é a culpa da desinformação generalizada que tomou conta do país? Dos jornais ou do governo?

Não tenha a menor dúvida. É do governo. Desde a primeira entrevista coletiva dada pela equipe econômica, sexta-feira retrasada, ficou claríssimo que a preocupação não era a de traduzir as medidas para os milhões de telespectadores que estavam assistindo a tudo. Ninguém conseguia destrinchar o economês. A imprensa, no caso, não pode fazer milagre com os dados que tem nas mãos. A própria maneira como foram redigidos muitos decretos e medidas provisórias leva a múltiplas interpretações. Só os técnicos do governo têm condições de tirar muitas dúvidas. E não o sabem fazer.

Mas tudo isso também, reconheço, não serve como desculpa para a imprensa. Nem deve ser sinônimo de acomodação. Em vez de publicar informações confusas, seria preferível evitar as informações conflitantes? Os jornais deviam então destacar mais as íntegras das medidas? Sim e não. Se a íntegra é fundamental, a sua tradução também. Por isso, independente da precária atuação do governo na divulgação das medidas, o pacote serviu para mostrar, também, o quão incipiente andam os serviços de economia dos jornais. Boa oportunidade para melhorá-los.

No que se refere à macroeconomia, por exemplo, somente a "Gazeta Mercantil" conseguiu dar alguma informação mais completa nestes dias e isto porque é um jornal especializado em economia. Quem a leu na quinta-feira tinha a impressão de estar lendo um jornal de outro país. "O dinheiro está voltando ao mercado", dizia a "Gazeta" enquanto outros matutinos destacavam o aperto do governo em cima dos bancos ou negativas sobre estabilidade no emprego.

Quanto aos problemas efetivos do cidadão, no entanto, nem a "Gazeta" conseguiu dar conta das dúvidas. A revista "Veja" circula com quase trinta páginas sobre as medidas. Optou por não entrar no serviço, na tradução do pacote. "Veja não acha que seja este seu papel -enquanto revista. Na realidade, a confusão é tão grande em relação a tantos pontos do pacote que a revista nem quis se aventurar na penosa tarefa de mastigar as medidas provisórias, decretos e circulares do Banco Central.

O leitor fica atônito. Não tem para quem reclamar. Liga para o Banco Central, está ocupado. Vai até a Polícia Federal, tem fila. Liga para o serviço de atendimento de seu banco e, quando consegue a informação, acha que o funcionário está querendo tungá-lo. Quando apela para o jornal, em vários casos, o jornal não consegue resolver. O máximo que se pode pedir ao leitor é que tenha paciência. Paciência para esperar a poeira assentar e o próprio governo se convencer de que tem de explicar melhor suas medidas.

RETRANCA

- Oito leitores se preocuparam em telefonar para o ombudsman esta semana para condenar a maneira pela qual a Folha noticiou a morte do comediante Mauro Faccio Gonçalves, o Zacarias, dos Trapalhões, que morreu domingo passado. O jornal teria faltado com a ética ao escrever que a família pediu à imprensa que a morte não fosse atribuída à Aids. Esta informação estava na primeira página na segunda-feira. Um leitor carioca foi ao ponto central -que é realmente ético. Ele não viu "sinceridade" nas intenções do jornal. De fato, ao simplesmente registrar o pedido da família, lavou-se as mãos quando a obrigação era investigar o caso para poder afirmar conclusivamente se procede notícia de que a morte foi por Aids. Uma vez procedente -e o jornal tem meios para checar-então, não havia por que esconder a informação do leitor, que merece saber tudo o que o jornal sabe e pode comprovar. Ao simplesmente registrar o pedido da família sem investigar a informação, o jornal feriu a própria família do comediante e, pior, deixou seu leitor na dúvida.

- A Folha saiu-se também muito mal nesta semana na cobertura do assassinato de Adriana Caringi, em São Paulo, cuja casa dos pais foi invadida por um casal de assaltantes, que também morreu depois de intervenção policial. No material da Folha faltou, em detalhes, toda história de chegada dos assaltantes, da invasão e do momento dramático do tiro disparado por um atirador de elite. Na sequência do noticiário (a "suíte", termo francês usado no jargão para definir o acompanhamento da sequência de um fato jornalístico), a Folha nem se preocupou em levantar os detalhes que perdeu na edição de quarta-feira. Preferiu dar um destaque desmedido para a "repercussão" do fato. Ou seja, foi ouvir algumas personalidades sobre o que achavam de tudo aquilo. Era a preguiça jornalística em ação. Era momento de investigação, pesquisa com médicos legistas para saber quem havia matado Adriana. As declarações das personalidades também deveriam ser publicadas, sem dúvida, mas não como o grande destaque da página. A continuar assim, a Folha vai acabar fazendo má escola com este jornalismo "repercutitório".

- Aprendo na coluna do ombudsman do "Boston Globe", Robert Kiestead, que o "The New York Times", um dos jornais mais influentes do mundo, fez 1.475 correções de informações no ano passado. O jornal americano costuma publicar suas notas retificativas agrupadas na sua terceira página.

- No mesmo período, 1989, esta Folha registrou 208 "Erramos". Ou seja, enquanto o "The New York Times" admite em média quatro erros de informação por dia, esta Folha admite meio erro. Até a chegada do ombudsman, no final de setembro do ano passado, a Folha registrava 11,9 erros por mês. A partir de outubro a média pulou para 29 erros reconhecidos. Este ano, a média cresceu para 32 erros por mês até agora. Não estão computados nesta conta os erros de digitação e ortografia. Nem os da Folha (que o leitor sabe que são muitos, 2,3 por página, cerca de 160 por dia) nem os do "Times", que também existem em torno de 20 a 30 por dia.


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