Folha de S. Paulo


Terremoto de Collor abala também a imprensa

Publicações sérias -como o jornal "The New York Times" ou a revista "Time"-têm por norma não publicar notícias de planos nem de efemérides. Só o fazem em raríssimas ocasiões. A imprensa cabocla é especialista em cavucar efemérides -o que faz de muitos cadernos culturais imitações anacrônicas do Almanaque Biotônico-e em antecipar planos. Governamentais, empresariais, políticos, qualquer plano, não importa qual. Por essas e outras, a candidatura de Fernando Collor virou um fenômeno e os planos genéricos de seu projeto de governo ganharam tanta dimensão nos jornais, rádios e televisões do Brasil. Em primórdio, também é óbvio, ninguém é contra planos de moralização, felicidade geral e fim da inflação -o mal maior.

Pois agora a porca torceu o rabo. Na tarde desta sexta-feira, a imprensa brasileira viu-se confrontada não mais com planos, mas com medidas concretíssimas baixadas pelo novo governo. As primeiras reações desta própria imprensa, estampadas com todas as letras nos jornais de ontem, sábado, mostram ser bem mais cômodo especular e elogiar com os planos do que recebê-los quando eles se tornam realidade, dispostos a cumprir promessas.

Até as edições de sexta-feira, embaladas pelo clima de festa de posse, tudo era o melhor no melhor dos mundos para a grande imprensa, principalmente para aquela comprometida com a candidatura Collor. "Presidente Collor promete até a vida pela reconstrução do Brasil", manchetou "O Globo", retórico e bajulatório. "O estilo Collor sobre a rampa do poder", indicou "O Estado de S.Paulo", explicando bem este estilo: "rápidas e energéticas passadas" de quem pertence a uma "geração que tem pressa". Desconfiados, os jornais que tiveram uma participação editorial crítica em relação à candidatura Collor optaram pelo registro objetivo das primeiras medidas. "Jornal do Brasil": "Collor fecha repartições, demite pessoal e vende casas do governo". Esta Folha: "Collor toma posse, baixa nove medidas e prepara o choque".

Ontem, no entanto, as posições se inverteram. Os jornais mais críticos foram os que vieram em editoriais, em apoio às medidas duríssimas. Os mais bajulatórios apareceram com reservas e desconfianças. O bloqueio do dinheiro nos bancos foi o que engasgou mais. Esta inversão de expectativas deu-se em nível editorial, nas páginas reservadas para opinião dos próprios jornais. Opinião que, em alguns casos, traduz o pensamento de partes substanciais da elite brasileira, mesma que Collor promete combater e, paradoxalmente, também o elegeu. Tudo se aclara.

"O Estado", por exemplo, dedicou todos os seus editoriais, três, para a parte econômica do plano. Cheio de dedos, pedindo licença para emitir juízos (já que "sua excelência" se mostrou "aberto à crítica construtiva"), não se segurou. "S. exa. não pode permitir-se correr o risco de, desejando salvar o mundo, matar a humanidade que o habita", alertou. "As medidas ontem baixadas desorganizarão a economia mais do que fez o Plano Cruzado", profetizou. Elas "não vão no sentido de defender a economia de mercado", esperneou. Chegou ao ponto de livrar as instituições financeiras das responsabilidades que lhes cabem na ciranda, definidas ali como "meras intermediárias" entre os cidadãos e o Banco Central.

O terceiro editorial acusou o novo governo de usar a todos como "cobaias", alertou que "de overdose também se morre" e desejou que tudo isso não passe de uma "tática para negociar com a Nação". Chegou a este ponto depois de, no segundo editorial, ter se esforçado para criar o primeiro pode expiatório nessa história: a ministra Zélia Cardoso de Mello. Considerou suas declarações de que iria deixar seu dinheiro no over como "conselhos muy amigos" e garantiu ter sido ela a primeira a quebrar os vínculos de confiança do governo com a "opinião pública".

O matutino "O Globo", especialista em espalhar editoriais curtinhos por suas páginas, preferiu ficar oficialmente calado no sábado. Seu único editorial elogiava sem restrições a reforma administrativa. No entanto, se oficialmente todo o seu sentimento estava lá, o mesmo que empolgou os redatores da terceira página de "O Estado", o garrote na liquidez. "Será um erro de consequências irreparáveis o eventual bloqueio de recursos aplicados no over", escreveu o colunista-mor de "O Globo", José Carlos de Assis, responsável por uma coluna diária ao lado da página editorial. J. Carlos (como ele assina) dá recados e diz o que precisa ser dito. Pede que "a jovem equipe tecnocrática" reflita e "recue em algumas de suas medidas mais temerárias". Jornalisticamente, também, "O Globo" não escondeu suas preocupações. "Collor bloqueia o dinheiro", foi sua manchete cujo texto explicativo exibiu na sua primeira frase opinião do ex-ministro Octavio Gouvêa de Bulhões, que considerou o plano econômico "duro demais". Note também que "O Estado" e "O Globo" destacaram em suas primeiras páginas a reação do Congresso (de "perplexidade" conforme o jornal carioca: "de aprovação difícil", para o matutino paulistano).

Folha e "Jornal do Brasil" receberam com muita surpresa o hiperpacote, mas não fizeram restrições como os dois jornais mais conservadores do país. A surpresa ficou na parte editorial. Mais uma vez, como seu viu, Collor conseguiu espantar a imprensa com o anúncio de medidas bem mais impactantes do que se imaginava (justiça seja feita, a "Gazeta Mercantil" de sexta-feira foi quem adiantou com mais clareza o lado polêmico do pacotaço; "Liquidez apertadíssima" era o título de uma de suas reportagens de capa). Folha e "Jornal do Brasil", no entanto, não deixaram por menos. "Choque do Plano Collor é o maior de toda história", soltou a Folha em manchete enquanto o "Jornal do Brasil" gritava em letras maiúsculas: "Reforma de Collor faz terremoto na economia".

Na sua página dois, em editorial único, a Folha se disse surpreendida pelo "impacto inaudito" do plano, fez um alerta aos problemas de "curto prazo" que o controle monetário pode trazer, mas afirmou que esta circunstância "com toda a carga de inquietações que é capaz de produzir, não compromete contudo as linhas gerais de um programa que se mostra adequado" O "Jornal do Brasil" encarou o caso como "última oportunidade" para o país e justificou com o argumento de que "ou o Brasil realiza de uma vez seu saneamento econômico e moral ou o país vai terminar este século diante de gravíssimos problemas sociais e políticos". Sem a "ousadia" demonstrada pelo novo governo não há esperanças, sustenta o matutino carioca.

Nesses jornais de ontem, os papéis se inverteram. Os liberais, críticos durante a campanha, dão um voto de confiança para Collor. Os conservadores, que o sustentaram até aqui, começam a chiar. Foram as primeiras reações. Resta acompanhar agora a reação da população, dos seus representantes no Congresso e, o mais gozado, a postura das elites daqui para a frente, muito bem representadas nos grandes jornais. Vamos ver quem tem mais força e qual será o papel da imprensa neste processo.

RETRANCA

- O jornalista e escritor Alberto Dines, 58, é uma espécie de pré-ombudsman a imprensa brasileira. Na segunda metade de 70 ele assinou uma coluna semanal nesta Folha que ficou famosa: "Jornal dos Jornais". Comentava a performance da imprensa num estilo muito próprio, emocional (no bom sentido) e carregado de opiniões e ideias sobre os jornais e jornalistas de então. Quem conheceu a coluna tem hoje a oportunidade de relembrar-se dela e quem não a conheceu pode sentir agora um pouco do estilo de Dimes. Ele acaba de ver publicado um livro seu. "Baú de Abravanel" (Companhia das Letras, 170 págs.) e ficou chateado com maneira pela qual o livro foi recebido na imprensa brasileira. Um dia depois de ter recebido em Lisboa (onde trabalha atualmente) um telefonema comovido de Silvio Santos, agradecendo o livro, Dines me mandou um bilhete, do qual eu reproduzo a parte onde ele se refere às notícias do livro na nossa imprensa. Aí vai o legítimo Dines do "Jornal dos Jornais":

- "Aproveito para compartilhar o meu espanto com a qualidade da crítica literária patrícia. Veja bem, o livro ("O Baú de Abravanel") está vendendo muito bem e o espaço que me tem sido concedido é generoso (basta lembrar a capa da nossa 'Leia', a entrevista da 'Imprensa', etc.) As exceções eram esperadas nos santuários de rancor onde continuo na lista negra pelos 'pecados' cometidos em espinhosas funções parecidas com as tuas".

- "Falei em crítica literária mas o que existe são resenhistas de releases e orelhas, de repente alçados a posições onde podem bombardear um livro e seu autor com toda impunidade. Tomo como paradigma desta distorção um noticiarista do 'Globo' que inventou a maluquice de que eu queria lançar o 'Baú' a 15 de novembro para aproveitar a excitação criada pela impugnada candidatura de Silvio Santos. Nem sequer leu o posfácio onde está consignado expressamente e com detalhes que comecei esta versão a 16 de novembro (sendo que a primeira é de 1985!). E só tratou do meu 'oportunismo'. Gente, são só 170 páginas, pejadas de informações inéditas sobre conspirações, sequestros e fugas e, mesmo que fosse metafísica, deviam ser lidas -para isso o jornal paga um cachê ao profissional e o leitor delega-lhe a credibilidade".

- "No ano passado um pífio trabalho de invenção sobre Gregório de Matos foi alardeado como livro do ano e na semana seguinte era publicada a obra-prima de García Márquez, 'O General em seu Labirinto', com acolhida muito mais discreta. É claro que o Prêmio Nobel não tem o mesmo lobby em nossa imprensa, ganhou a ficcionista tupiniquim e seus protetores. Isso lembra um velho crítico musical carioca que sempre encontrava uma maneira de beliscar qualquer virtuose estrangeiro -por mais genial que fosse–, mas que partira no dia seguinte para nunca mais voltar, enquanto derramava-se em elucubrações sobre o mais desafinado intérprete nacional, pois certamente esbarraria com ele num botequim da moda".

- "Jornalismo literário é uma coisa, a crítica literária, outra. O 'Jornal do Brasil' entrevistou-me durante 45 minutos (pelo telefone internacional) para fazer a notícia do livro. O mesmo fez o 'Jornal da Tarde', através de correspondente em Lisboa. Depois, os respectivos críticos darão sua opinião sobre o teor ou a maneira com que o escrevi. O 'Estadão' fez a avaliação junto com a notícia, legítimo. Mas tratar um livro a partir de uma hipótese sobre meus secretos intuitos é má-fé. Não pretendi denegrir o Silvio Santos, mas fazer uma reportagem (ou crônica como ainda hoje se diz em certos veículos portugueses) sobre uma importante dinastia judaica. A melhor prova da ausência de 'intenções clandestinas forneceu-a o próprio Silvio Santos -a quem nunca vi-que telefonou-me na terça-feira para agradecer a seriedade do trabalho".


Endereço da página: