Folha de S. Paulo


Sobre Paulo Francis - ou o infantilismo tardio

Recebi um telefonema na quinta-feira de um leitor de Goiânia, o industrial Ronaldo Zica. Queria saber por que a Folha tinha "censurado" trechos do artigo de Paulo Francis cuja reprodução no jornal local "O Popular" -que comprou os direitos da republicação-alinhava dois parágrafos a mais do que na contracapa da Ilustrada do mesmo dia. Ele leu os trechos omitidos na Folha. Entravam depois do intertítulo "O movimento anti-Collor", como segundo e terceiros parágrafos:

"Outro dia por exemplo vi a seguinte manchetinha na Folha: 'Inauguração de McDonald's ofusca visita de Collor a Moscou'. Pura bobagem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Os russos estão com fome que esses esquerdistas fuleiros e piroquetes gostariam que houvesse no Brasil se todo o abastecimento fosse estatizado, mas a inauguração do McDonald's (em que geral 'europeu' nem chega perto aqui) nada tem a ver com a visita de Collor, que não é um acontecimento popular, e, sim, de Estado, como se diz, e ele teve do governo soviético uma recepção de primeira, e Gorbachev comparou seu programa enunciado (até agora, apenas enunciado) à perestroika. Procurem nos arquivos se há alguma referência de Gorbachev a qualquer coisa da 'lavra' de Ribamar. Nada. Esqueceu até de falar de Ribamar, que o tinha visitado, num discurso sobre a América Latina, e que citou Alfonsín e García Márquez."

"Tivesse este jornal um crítico interno e é claro que teria chamado às falas o autor da manchetinha. Algum dia talvez a direção resolva instituir o cargo de crítico. Esperemos -e não aguardemos-com fé".

Você leu. Paulo Francis conquistou mesmo o direito de escrever bobagens. Merecia que mais essas fossem publicadas na Folha. Cada artigo seu, cada linha que escreve é uma prova disso. O jornal sabe de velho quem ele é. Conhece seus humores. Em outras ocasiões foi mais violento contra este jornal e contra este ombudsman -o advogado do leitor e crítico interno há quase cinco meses. A Folha demonstrou desconsideração com o leitor a privá-lo de mais uma das pérolas do articulista de Nova York.

Não é praticando essas pequenas cirurgias que se vai resolver o problema Paulo Francis, se é que ele é um. Caso os preconceitos dele contra "crioulos", homossexuais e nordestinos fossem levados ao pé da letra, e aplicada a Lei da Imprensa em vigor no Brasil (cujo falso rigor eu demonstrei nesta coluna), Francis já teria acumulado mais de cem anos de cadeia. A tolerância da Folha, dos leitores e da justiça é tamanha que ele pode esgrimir seu racismo sem maiores danos do que uma resposta ou outra na imprensa. Sorte dele.

Escrevi em novembro passado que Francis não pratica jornalismo, faz ficção. Ele é um escritor que ainda não deu certo nos livros (nunca foi um best-seller como Tom Wolfe, para compará-lo com quem ele se mede), mas tem sucesso na imprensa. Suas crônicas (tudo o que ele escreve é crônica, não pode ser absorvido como análise ou notícia) valem o quanto vale um jornal nas suas poucas horas de vida -antes de servir para embrulhar peixe ou ser vendido por quilo. Quando reproduzidos em livro -ou escritos especialmente para esse fim-seus comentários repousam encalhados nas estantes.

Talvez daqui a 50, cem anos, descubram algum outro valor nesse amontoado de chutes misturados a opiniões quase sempre geniais. Mas, por enquanto, ele é diversão do jornal. Pouco importa o índice de leitura de seus textos tenha despencado dos 96 pontos para 36 pontos na última pesquisa sobre o perfil do leitor da Folha, realizada no ano passado. Mesmo que o critério de aferição tenha sido modificado, uma coisa é patente: ele perdeu o posto de cronista mais lido na Folha para Joelmir Beting. Mas a decadência, como se sabe, tem seu fascínio.

Se Paulo Francis não fizer ficção e não distorcer fatos, perde sentido. No trecho cortado ele ironiza afirmando que o jornal não tem crítico interno. A "manchetinha" sobre o McDonald's foi observada sim por este ombudsman na crítica interna e diária, datada de primeiro de fevereiro e recebida por ele em Nova York. Francis não se deu ao trabalho de checar esse dado. Minha crítica não foi boba como a dele. Afirmei que o jornal deveria ter destacado na capa a negativa de Gorbachev -arrancada através de competente intervenção do jornalista brasileiro Sílvio Boccancza-de que não renunciaria ao cargo de secretário-geral do Partido Comunista da URSS. Disse ainda que a Folha optou pela "coluna social" da viagem em vez de mostrar o essencial. Acusei o jornal de "imperícia" na manobra. Tudo coisa muito severa para ser ressaltada. É mais cômodo mentir, cacarejar que o jornal não tem crítico.

Quando o prefeito de Washington foi preso em flagrante consumindo droga, em janeiro, Francis "analisou" o fato concluindo que a administração de Marion Barry havia sido "um desastre' -em desacordo até com o jornal que ele considera o "mais influente" da imprensa ocidental, o "The New York Times". Justificou a má gestão pelo fato de o prefeito ter ficado "em pleno sol" assistindo futebol na Califórnia, sem dar satisfações sobre uma nevasca que tinha isolado o Pentágono. Se a realidade não bate com a análise de Francis não tem a "menooorr importância". Francis muda a realidade para adaptá-la às suas conclusões. O Pentágono não está em Washington, mas em Arlington, fora da jurisdição do prefeito. Barry nada tinha a ver com a coisa. O crítico interno também apontou o erro. Talvez por isso Francis não o tenha corrigido até hoje.

Leitores têm arrumado tempo para escrever e registrar falhas cometidas por Paulo Francis. O Painel do Leitor está dando vazão a muitas dessas cartas (em um mês a seção recebeu 182 cartas sobre Francis, 153 contra, 18 a favor; publicou 18 contra e quatro a favor). Erros cabeludos. Ele não consegue escrever certo palavras em francês, torce citação até de Shakespeare, se mete a falar de entropia e solstício sem a menor noção do significado de cada palavra, confunde juros mensais com juros diários, cita números absurdos sobre a economia brasileira... A lista dos últimos chutes e erros tomaria mais espaço do que abriga este jornal.

Costuma também soltar teorias apocalípticas na Folha e desdizê-las nos comentários para a Rede Globo. Durante as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa, em Paris, tive a oportunidade de ouvi-lo ditar para a Folha artigos desancando com a reunião de cúpula ("dentro de uma semana esta cúpula será varrida da memória como as outras") para alguns minutos depois gravar comentário exatamente contrário para a Globo. O que era um "nada" virava "expectativa" de que alguma coisa poderia acontecer. Ele gosta de falar mal da Folha na Folha, mas deixou de falar mal da Globo. Já se vão anos (foi em 14 de janeiro de 1971, no "Pasquim") que xingou Roberto Marinho de "um homem chamado porcaria". Disse que "esgoto" era "uma imagem exata de RM". A imagem correta "seria poluição pura, inútil e letal".

Mas os elogios atuais que Francis tem feito ao presidente eleito, Fernando Collor, precisam ser entendidos mais pela sua subserviência para com pessoas brancas, bem vestidas e que o tratam gentilmente do que por uma admiração catatônica pelo poder, do que bajulação indireta a Roberto Marinho, que apoia Collor. É um preconceito às avessas. Se o presidente Sarney lhe tivesse dirigido um aceno qualquer de simpatia, ele teria mudado radicalmente seu discurso contra o "Ribamar".

Não pense que Francis tem compromisso com alguém. Ele se compromete apenas com a sua cabeça, esteja ele em situação boa ou precária -como ultimamente. Para usar termos que trouxe à baile, invocando a memória de Cláudio Abramo, ele tem mesmo coragem de dizer o que pensa. O defeito é que não pensa no que diz. Se realizasse uma ligeira releitura de seus artigos, se checasse os dados, se verificasse a realidade para não deformá-la, os seus textos seriam outra coisa -jornalismo, quem sabe. Imbatíveis, talvez.

Recomendo, portanto, que Paulo Francis seja consumido como tal, um ranzinza que sofria de senilidade precoce na infância e na idade adulta foi acometido de infantilismo tardio. É isto que lhe dá graça e ainda me anima na leitura de sua perturbada ficção.

RETRANCA

- Sobre os cortes efetuados na coluna de Paulo Francis e detectados pelo leitor de Goiânia, o diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, deu as seguintes declarações ao ombudsman:

- "A pluralidade de pontos de vista faz parte do projeto editorial da Folha. Poucas publicações em todo o mundo podem igualar-se à Folha quanto ao espaço e importância que ela reserva à autocrítica e à publicação de opiniões contrárias às suas. Com frequência, até mesmo posições oficiais do jornal são criticadas em textos assinados que aparecem publicados na própria Folha".

- "Isso não significa, porém, que a Direção de Redação, se desobrigue da condução política do jornal como um todo. Como contrapartida à pluralidade há uma unidade básica que convém preservar a todo custo, sob pena de o jornal ser dilacerado por desavenças de opinião ou desentendimentos pessoais. A alma de qualquer jornal é sua unidade".

- "Para um jornal que cultiva a pluralidade de pontos de vista e estimula a liberdade de opinião, zelar pela sua unidade básica é mais do que aconselhável -é imperativo".

- "Paulo Francis pretendeu publicar um ataque à política do jornal em relação ao futuro governo e à instituição do cargo de ombudsman sem que suas considerações fossem previamente submetidas aos órgãos centrais da redação: a Secretaria e a Direção. Daí a razão dos cortes em sua coluna de 15.2.90 na Ilustrada. Caso esses órgãos centrais abrissem mão dessa sua responsabilidade, resultaria impossível planejar, coordenar e dirigir a operação complexa da edição de um jornal como a Folha".

- "O respeito à diversidade tem levantado contra o jornal a acusação de que ele é anárquico e sem linha editorial; o apego à unidade desperta queixas de que ele é, pelo contrário, autoritário e dogmático. O tempo terminará por mostrar que a unidade tem sido o sustentáculo da pluralidade; e vice-versa".


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