Há tempos que não se via uma polêmica instrutiva entre jornalistas como a que a Ilustrada abrigou nas duas últimas semanas.
De um lado (do Atlântico) está Ivan Lessa, 54, o texto mais nervoso da imprensa brasileira, o verdadeiro nome do Edélsio Tavares dos tempos heroicos do "Pasquim", o autor do grande romance moderno brasileiro (que ainda não existe) e de um livro de contos que já existe ("OS Garotos da Fuzarca"). Um homem que se orgulha de estar há 12 anos fora do Brasil, em Londres, onde se diverte trabalhando na BBC.
Do outro lado, em São Paulo, está o franzino Luís Antônio Giron, 30, jornalista projetado como crítico de música para Ilustrada, em 85, às custas de observações nada gentis sobre a finada Magdalena Tagliaferro. O mesmo que naquele ano disse que o tempo passou na janela e só o Chico Buarque não viu e dois anos depois arrumou briga com Rita Lee (a quem acusou de estar na "menopausa criativa") e depois armou discussão com Nelson Motta (por causa da Marisa Monte) e Marília Pera.
Giron tanto fez que conseguiu o maior feito de sua carreira até aqui: fazer Ivan Lessa escrever. Ficou irado e contou até quando foi erotizado por Olga Perna Seca a troco de 50 mil réis no quinto andar do número 157 da rua Riachuelo, no Rio, ao som de boleros, talvez Aracy de Almeida. Mas eram boleros.
Ler Ivan Lessa é um privilégio. Quanto mais raivoso melhor. Desancou com Giron na contracapa da Ilustrada em 2 de fevereiro. Soltou até uma frase enigmática dizendo que, pelo que se lembra do "bananão", o Giron "vai longe". Traduzo, Bananão é sinônimo de Brasil para Lessa, o único país "onde todo mundo engana todo mundo ao mesmo tempo". Lessa se irritou com as observações de Giron sobre Carmen Miranda, Aracy de Almeida e Orlando Silva, todas publicadas em crítica na Ilustrada, desde novembro.
Ele passa um sabão no Giron e critica, através do estilo "subdescontrucionista", toda uma maneira errada de fazer jornalismo.
Giron, impertinente por natureza -o que o aproxima de Lessa–, retrucou na quarta-feira passada com um texto no qual, sem querer, vai à raiz de alguns problemas históricos do jornalismo brasileiro. Pois é em função da resposta de Giron que entro nessa história -eu que prefiro a dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues às estrelas da MPB que separam Lessa de Giron.
Tudo isso passa de um problema de gerações, esgrimiu Giron. Mexeu com fogo. O experiente Clóvis Rossi não aguentou quando leu que o texto de Lessa "reafirma o irracionalismo típico de toda uma geração de jornalistas que gastou a juventude e gasta toda a maturidade a combater acadêmicos". Ficou irritado com a caricatura de "toda" esta geração: "Têm de 40 a 60 anos, fizeram imprensa nanica, acreditam no valor do craque textual e boa parte deles trocou a reportagem pelo confortável jornalismo frasista de gabinete".
Rossi tem 47 anos e portanto faz parte desta geração, mas é fácil concordar que ele, e muitíssimos outros dessa idade, não se enquadram nesta moldurinha fácil dos que beberam no "impressionismo boêmio dos anos 50 e 60". Ao generalizar, Giron erra -mesmo ressalvando antecipadamente que vai caricaturar. Num bilhete ao Giron, cuja cópia me autorizou a citar, Rossi diz que o problema não é de idade, mas de talento.
No entanto, uma ferida foi exposta e vale a pena cutucar. Mais um mérito para Giron. Há de fato uma questão em jogo na imprensa que vai além do talento e que diferencia estilos. Menos do que um problema geracional, o nó da questão está no método.
Para grande parte da imprensa brasileira não interessa mais o jornalista "épico" de até poucos anos, igual ao piloto vívido por Sam Shepard em "Os Eleitos". Aquele que rompia a barreira do som por mérito próprio e a despeito dos limites da máquina que comandava. Agora interessa é o jornalista "astronauta", produzido para representar no palco das cabines das espaçonaves o triunfo da técnica e do planejamento. Quando essa técnica se junto ao bom texto então está tudo resolvido. Foi-se o tempo em que uma única personalidade mandava e desmandava numa redação, desafiando proprietários, comandados e leitores. Na "base" acabaram as reportagens ditas "humanas". Basta ver o quanto as lamúrias em relação à morte destes textos ainda alimentam críticas nas redações e se reproduzem nas escolas de jornalismo.
Para resumir, existe então realmente este método que Giron detecta, baseado no achismo romântico, e se desenvolve também rapidamente um outro, baseado na pesquisa, na compilação, na checagem sistemática de dados, na investigação, no distanciamento crítico. Lessa, Giron e o próprio Rossi fazem parte dessa "corrente", os seus estilos é que não batem.
Ao pregar a criticidade e a demolição de mitos, Giron acerta. Pode não saber ainda como fazê-lo. Ao praticar, diuturnamente seu ceticismo cínico, Ivan Lessa também acerta. Mesmo quando defende mitos. No fundo, nem ele leva muito a sério tudo isso. Não aguenta é a "desconstrução" bobinha, baseada em jogos inócuos de imagens delirantes.
Lessa deve ter gargalhado com as citações de Walter Benjamin feitas por Giron. Não importa. Giron precisava ter ido mais adiante. Uma das teses sobre a filosofia da história do mesmo Benjamin, diz que o anjo que todos chamam de Progresso só acumulou detritos às suas costas. Giron quer romper com a "doxa", conceito cunhado por Roland Barthes (aqui Lessa também vai rir). E a disposição de Giron em marretar a "doxa" é louvável principalmente quando se sabe de onde veio, conforme Susan Sontag: era o que Flaubert chamava de "ideias recebidas", tornou-se "mentalidade burguesa", virou a "falsa consciência" dos marxistas e, finalmente, a "opinião corrente", a "doxa" de Barthes.
Tanto Giron quanto Lessa se propõem à mesma tarefa. Querem derrubar a tal "doxa" (êpa, lançaria Ivan). Calejado, Ivan Lessa evitou ontem entrar na discussão que lhe propuseram. Passou por cima das generalizações e pinçou expressões infelizes de Giron. Considerou o caso encerrado e "descansou a valise". Pena que Ivan Lessa morra de preguiça de escrever, justamente quando encontrou um pernóstico à sua altura, outro detonador de mitos. Quem saiu ganhando no bate-boca, no entanto, fomos nós, os leitores.
RETRANCA
- A Folha foi o primeiro jornal a noticiar a morte da modelo Adriana de Oliveira. Foi também quem apresentou mais fiascos no caso. Na quarta-feira, noticiou que o exame das vísceras não tinha confirmado a presença de drogas, conforme o exame preliminar. A reportagem era tão confusa que, após a leitura cuidadosa, permitia até a conclusão de que havia mesmo drogas nas vísceras. Mas o jornal se apressou em comprar a versão da inexistência das drogas, posteriormente desmentida por um terceiro exame no qual a análise espectrométrica (conforme "O Globo") não detectou cocaína. O exame final (o terceiro) acabou mostrando que a modelo tinha consumido cocaína, maconha, álcool e tranquilizante. Na sexta-feira, outra precipitação da Folha: enquanto a imprensa mineira e o "Jornal da Tarde" noticiavam que o juiz havia aceito o pedido de prisão preventiva do namorado e do casal de amigos que estavam com a modelo quando morreu, a Folha noticiava apenas que o delegado havia pedido as prisões preventivas.
- Um dos maiores lobbies que existem no Brasil é o dos funcionários do Banco do Brasil. Desde que Fernando Collor passou por Nova York (quase no final de janeiro), e o jornalista Paulo Francis registrou que o "salário médio" do BB é de 4.500 dólares, que tenho recebido telefonemas contestando o número. Seria exageradíssimo. A Folha registrou uma coisa, Collor disse outra para a revista "Veja" e a confusão realmente está no ar. "Veja" anotou que o salário médio de 4.500 dólares seria dos "executivos" do banco. Independente disso tenho pedido a todos que ligam para enviarem números confiáveis e oficiais para que os leitores saibam afinal quanto é o salário médio do BB. O presidente da Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil, João Botelho, por exemplo, não conseguiu os números. Em carta publicada no dia 27 do mês passado ele reconhece: "por envolver aspectos técnicos complexos (quadro de carreira, tempo de serviço, etc.) deixamos de nos manifestar aqui, de forma concreta, sobre os salários do BB". Não posso deixar de registrar que um dos meus interlocutores, Nelson Petraglia, funcionário do BB em Campinas, foi o único a mandar um dossiê recheado de cálculos baseados no Almanaque do Pessoal, em documento do Sindicato dos Bancários de Brasília e, diz, em comunicação com a direção geral. Suas contas demonstram que o salário médio no BB, no câmbio oficial, é de 2.257 dólares (ou 1.081 dólares no paralelo). Em todo caso, para evitar dúvidas acredito que a expressão "executivo", recolhida pela "Veja", é fundamental na compreensão do número dado pelo presidente eleito.