Folha de S. Paulo


O falso rigor da Lei de Imprensa

A imprensa brasileira deu pouca atenção, na semana retrasada, a um assunto que mexe com suas entranhas, a reforma da Lei da Imprensa. O clima de fim de governo ajuda a desconsiderar projetos que, apresentados agora, só poderão ser resolvidos no governo Collor. Mas o ministro da Justiça, Saulo Ramos, decidiu levar adiante sua ideia de "modernizar" a lei atual e nomeou comissão para revisá-la.

Estou certo de que não interessa muito à imprensa esta discussão. Você verá por que.

Rigorosa, a Lei de Imprensa, a de número 5.250 surgiu em fevereiro de 1967 e leva a assinatura do marechal Castelo Branco. É de conhecimento corrente nos meios jurídicos, e na própria imprensa, que os juízes evitam condenações com base nesta lei exatamente para não colocar na cadeia responsáveis por "delitos de opinião", aqueles que não teriam periculosidade social.

Falando a este ombudsman, o ministro Saulo Ramos foi preciso na defesa de uma revisão ampla. Ele explica que a Constituição estabelece garantias e direitos fundamentais no seu artigo quinto (como a livre manifestação de pensamento), mas que, por ser uma carta magna, requer lei ordinária no estabelecimento e no detalhamento das sanções, por exemplo.

Saulo Ramos considera que tudo precisa ser muito bem esclarecido e que o "dano moral" é uma figura estranha ao direito brasileiro. Não vê razão para a rigorosa pena de prisão indicada para os crimes de calúnia, difamação e injúria. Para ele, os delitos de imprensa precisam ser punidos com multas. Elas aumentariam conforme a gravidade do caso. E o jornalista não precisaria ser tratado como criminoso comum, do tipo que requer separação da sociedade. Ele acha também que deveriam existir sanções específicas e bem mais graves para intenções dolosas de caluniar.

Há quem duvide da necessidade de uma Lei de Imprensa para reger os delitos de opinião. Seria um privilégio. Se o crime de extorsão está previsto no Código Penal, assim como os crimes comuns, nada impede que os direitos de opinião também o estejam com mais detalhes do que atualmente.

Mas o nó da questão é que a atual Lei da Imprensa é uma faca de dois gumes. Por ser rigorosa demais -prevê detenção de até três anos de calúnia (imputar falsamente a alguém fato definido como crime), 18 meses de cadeia em caso de difamação (imputar fato ofensivo à reputação de alguém) e até um ano de cadeia nos casos de injúria (ofender a dignidade e o decoro de alguém)-os juízes realmente enrolam nos processos e condenam com parcimônia.

Mesmo condenado, é dificílimo ver jornalista na cadeia. Existem algumas com dezenas de processos e condenações nas costas e que passeiam livremente pelas cidades, pelas páginas de jornais e pelas ondas do rádio ou da tevê -o que nada tem de mau uma vez que é direito conseguido na Justiça, ou em função da morosidade dela. Mas o problema é que muitos continuam com a desenvoltura caluniatória de sempre. Da forma como está, a Lei de Imprensa é menos um instrumento inibidor de delitos do que um estímulo.

Jornais chegam ao cúmulo do cinismo. Veja "O Globo" desta sexta-feira, "Justiça: Globo agiu certo no caso Eureka", soltou ele em sua capa. A distorção de informação operada nesta simples frase vai além do suportável. Em outubro passado, o matutino carioca colocou na primeira página uma foto de Leonel Brizola, então candidato a presidente, abraçado a um rapaz que foi acusado de traficar drogas. Foi um tremendo "engano" do jornal, que se aproveitou de uma apressada informação policial para escancarar em sua edição um fato negativo para Brizola -que não era o candidato do dono do jornal, obviamente.

Pois não é que o rapaz, Jose Roque Ferreira, entrou com pedido de direito de resposta na Justiça e isto lhe foi negado porque o juiz entendeu que o jornal já havia divulgado reportagem em que o acusado pôde rebater as acusações. Tudo bem, isso realmente aconteceu. Depois do estrago, o "Globo" ouviu o rapaz, mas manteve, sob aparência de notícia objetiva, todas as acusações que o policial havia feito. Em nenhum momento o "Globo" pediu desculpas a seus leitores ou reconheceu que o jornal havia se enganado, confiou demais numa fonte da polícia ou o que o valha. E agora, descaradamente, solta título com dupla leitura, onde afirma ter "agido certo" no "caso Eureka". É óbvio que não agiu. Ao dar este título, o jornal o faz a dar a entender que teria agido certo ao colocar a foto de Brizola afirmando que ele estava "sorridente", abraçado com o "traficante Eureka".

Na semana passada, mais um caso. O "Jornal do Brasil" aproveitou conclusões da polícia carioca para traçar o "perfil" de dois prováveis assassinos da menina Fernanda Fernandes Carrecelas, de 3 anos, morta no parquinho de sua escola em novembro por uma bala considerada perdida. Mesmo não sendo acusados de nada, apenas suspeitos, dois cidadãos tiveram suas biografias devassadas pelo jornal e seus nomes impressos com todas as letras. Um músico e um comerciante ganharam notoriedade na página policial como prováveis assassinos, antes, veja bem, antes de serem sequer acusados do crime.

A lei atual acaba permitindo estes tipos de caso citados. Torna fácil a produção de calúnias que provocam estragos consideráveis na reputação de pessoas ou empresas. Os atingidos, inúmeras vezes, não conseguem o abrigo da Justiça para a reposição cabal dos fatos.

Em países do Primeiro Mundo, mesmo onde a imprensa é recheada de opinionismo senil, como na França, tanto o direito de resposta como as multas nos casos graves são aplicados com severidade pela Justiça. O líder da ultradireita francesa, Jean Marie Le Pen, costuma financiar parte de suas campanhas com multas que recolhe dos jornalistas que o acusam de racista, nazista e o diabo a quatro. Nos EUA há processos em que a responsabilidade civil da imprensa e dos jornalistas já rendeu multas de mais de 1 milhão de dólares ao ofendido.

Deixar de tratar o delito de imprensa como caso de cadeia, transformando as penas de prisão em multa pesadas, pesadíssimas, seria sem dúvida uma ótima medida em benefício dos atingidos e -principalmente-do leitor, este que nada tem a ver com as perseguições perpetradas por jornais, rádios e televisões.

Paradoxalmente, as condenações através das multas poderiam funcionar como um breque da irresponsabilidade, da picaretagem. Com a possibilidade de aplicar penas mais leves do que as da prisão, o juiz teria menos receio de ser rigoroso. Na reincidência a multa poderia ser bem mais pesada e a cadeia não precisaria ser descartada para os casos abissais.

Da maneira como está, repito, a atual Lei de Imprensa protege mais o transgressor do que o agredido.

RETRANCA

- Nossa imprensa transformou a cobertura da viagem de volta ao mundo do presidente eleito, Fernando Collor, num fantástico oba-oba. "O Globo" e "O Estado" disputam o título de badalador-mor. "O Globo", por enquanto, está na frente. Veja algumas de suas manchetes: "Collor propões diálogo entre Leste e Sul"; "Collor no Japão promete liquidar inflação com um golpe de caratê"; "Collor conquista a confiança do FMI e da Casa Branca" ou "Collor nos EUA: plano econômico trará bons resultados em cem dias".

- Durante sua estada no Japão, Collor foi aconselhado a fechar um acordo com o FMI para depois conversar sobre investimentos. Ao mesmo tempo, o governo japonês lhe prometeu que alguns empréstimos previamente aprovados e que estavam bloqueados serão liberados depois de sua posse. A cobertura desses dois eventos serviu também para dividir a grande imprensa brasileira. Os veículos que estão com boa vontade total em relação a Collor não tiveram dúvida em manchetar a grana prometida, o caso de "O Estado" ("Japão promete dólares a Collor") e "O Globo" ("Japão faz a Collor promessa de liberar US$ 6,5bi"). Os mais críticos, como a Folha, optaram pela primeira notícia: "Japão exige de Collor acordo com FMI", A "Gazeta Mercantil" também foi nessa, mas com um título chocho, "As condições dos japoneses para investir". O "Jornal do Brasil" preferiu ficar no muro: "Collor admite japoneses na indústria automobilística".

- Mas a disposição da Folha em fazer uma cobertura crítica dessa viagem foi além da necessária. Na terça-feira o jornal que o empresariado japonês não soltava dinheiro sem acordo com o FMI. Ficou sem dizer a seus leitores que o governo japonês prometeu liberar dólares retidos por causa da política econômica do governo Sarney. Esta segunda notícia foi dada muito bem pelo "Estado", na mesma terça. No dia seguinte, ao "recuperar" a informação que não teve, a Folha discorreu sobre uma verdade que colocou em título ("Empréstimo do Japão em fevereiro permanece bloqueado") para esconder uma outra verdade no pé da reportagem, a de que o dinheiro deve vir depois da posse. Ninguém havia dito o contrário. Falta à Folha entender que não se faz jornal para "responder" ao noticiário dos concorrentes, mas para informar o leitor. A disposição do governo japonês de liberar recursos que estavam emperrados é, por sim um fato bom para o país, não importa o presidente.

- O episódio mais gozado da cobertura da viagem, até agora, está na Folha. O leitor Olavo Drummond Filho (de São Paulo) ligou para "cumprimentar" o jornal pelo plantão na viagem entre Tóquio e Moscou quando Collor dormiu cerca de sete horas das dez de voo. A Folha informou que Collor "conversou pouco com sua mulher, Roseane, cuja mão só acariciou uma vez". O leitor achou imperdível o fato do jornalista ter estado as dez horas a postos para conferir a única carícia na mão.


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