Folha de S. Paulo


Uma barrida e duas lições

Tremenda barriga. Não há outra maneira para identificar a "notícia" dada pelos principais jornais e televisões do país no final da semana passada. Todos disseram que o presidente eleito, Fernando Collor, teria tido um encontro com o economista Mario Henrique Simonsen e o teria convidado para ser o ministro da Economia. Barriga, no jargão, é sinônimo de notícia falsa.

O encontro teria acontecido das 9h50 às 15h de sábado retrasado na casa do empresário Olavo Monteiro de Carvalho, ex-cunhado de Collor. O ex-presidente Ernesto Geisel também teria estado presente, conforme "O Estado de S.Paulo", o jornal que deu mais "detalhes" do encontro. Em manchete, o centenário matutino paulista chegou a dizer que Simonsen só aceitaria o convite se tivesse "carta branca". No sábado, o SBT havia reproduzido telegrama da Agência Estado (de propriedade de "O Estado") dando conta da reunião e da participação de Geisel -embora o ex-presidente tenha sido ouvido pelo jornal e negado tudo. O jornal "Hoje", da Rede Globo, também havia avançado a possibilidade do encontro. Estava escudado em declaração do assessor de imprensa de Collor, Cláudio Humberto Rosa e Silva, segundo o qual o presidente eleito teria tido um encontro muito importante. A Folha informou seus leitores que Simonsen recusara o convite, mas elogiara o trabalho da economista Zélia Cardoso de Melo. Os jornais cariocas, mais próximos do "evento", também entraram na onda.
Para "O Globo", Simonsen teria sugerido Zélia para o seu lugar. O "Jornal do Brasil" falou da "rápida e sigilosa incursão" de Collor na cidade.

Foram necessários ao menos dois dias para os jornais se convencerem que o encontro não tinha acontecido mesmo. Nenhum deles pediu desculpas aos leitores. A Folha botou a culpa em assessores de Collor. "O Estado" -autor da melhor barriga-fingiu que não percebeu o próprio erro e fez editorial atacando os meios de comunicação que não se preocuparam em checar a notícia com o próprio Simonsen, no sábado. O "Jornal do Brasil" reconheceu o açodamento da imprensa e disse que a assessoria de Collor preparou uma "armadilha" porque empurrou os jornais para a conclusão de que o encontro havia ocorrido.

"O Estado" e a Folha revelaram o nome de pelo menos duas pessoas da assessoria de Collor que confirmaram o encontro fictício: Cleto Falcão, deputado estadual do PRN, e José Natal, assessor de Cláudio Humberto. Como a corda sempre rói do lado mais fraco, José Natal perdeu o emprego. Saiu "sem mágoas", declarou aos jornais. Uma intervenção do próprio Collor, em Punta del Este, no Uruguai, domingo, apimentou o caso. Ele respondeu com um "quem te disse isso?" à indignação sobre a "recusa" de Simonsen em ocupar a Economia. A atitude de Collor permitiu ao "Globo" especular até terça-feira sobre a possibilidade de Simonsen ocupar o ministério. "Simonsen já admite examinar convite formal", lançou o jornal.

Há testemunhas de que Collor gargalhava no avião, no domingo, quando soube que os jornais noticiaram o tal encontro. Ele se referia ao episódio como uma grande barriga. No mesmo dia, porém, dois colunistas da Folha -Clóvis Rossi e Janio de Freitas-já olhavam de esguelha para a insistência de Collor em projetar o nome de Simonsen. Clóvis Rossi escreveu que alguma coisa estava errada. Janio de Freitas avançou a hipótese de uma "tática de queimação" do nome de Simonsen.

Estas opiniões não impediram a Folha de levar adiante o "noticiário" e publicá-lo, curiosamente, ao lado da coluna de Freitas.

A imprensa começou a explorar o erro com ênfase na quarta-feira. Me parece calcada em confortável teoria conspirativa, no entanto, a versão mais difundida, a de que houve uma manobra sórdida para desmoralizar a imprensa. Lava-se as mãos muito facilmente neste caso. Se a imprensa se deixou levar a tanto, foi porque negligenciou procedimentos simples e rotineiros. Ninguém trouxe uma palavra de Simonsen no domingo passado. Se ele não atendeu o telefone porque dormiu até mais tarde, que mandassem um repórter ficar de plantão na sua casa. Se houve uma manobra para arrasar com a imprensa brasileira, então ela se saiu vencedora, a manobra, por culpa única e exclusiva dessa mesma imprensa.

Existe outra hipótese, ao gosto da mesma teoria conspirativa, que falta examinar. Collor poderia estar empenhado em descobrir por onde "vazam" informações na sua assessoria. Todos os jornais tinham em mãos o dado de que o encontro tinha existido e cada um deles trazia um detalhe diferente do que foi "discutido". Apontar estes detalhes como esforço de imaginação dos jornais é uma saída possível, mas nada honrosa. Tudo indica que cada veículo foi bem alimentado por uma "fonte". Cada um tinha minuciazinha diferente. Se foi isso, Collor tem elementos de sobra para saber quem falou o que para qual jornal.

Outra eventualidade, menos conspirativa, é a necessidade psicológica de alguns assessores se mostrarem bem informados. A "fonte" confirma então, de maneira sutil, um dado qualquer para não passar por desinformada. Não fica bem os jornalistas saberem que algo importante ocorreu sem que ele, o íntimo, tivesse sabido.

E tem mais, o leitor não deve descartar também o fato de que os jornalistas, mesmo concorrentes, conversam antes de escrever seus textos para "trocar figurinhas" -conforme dizem. Costumam checar as informações irrefutáveis -"houve um encontro"-e cada um guarda para si e depois publica alguns detalhes exclusivos. Assim, ninguém é "furado" (não fica sem a notícia).

Mas existem alguns fatos evidentes nesta história toda. Um deles é que Simonsen está queimado para o cargo. Collor se encarregou disso na entrevista coletiva que deu antes de sair para a viagem de volta ao mundo.
O definitivo, no entanto, é que toda a imprensa brasileira errou junta e os leitores e telespectadores acabaram lesados. Consumiram uma mentira grossa. Sobram também duas boas lições para a imprensa: 1. Não confiar cegamente nas "fontes"; 2. Nada publicar sem checar, sem cruzar com mais de uma pessoa. Esta segunda junta é válida sobretudo quando for preciso apurar fatos cujo limite de veracidade vai além de um telefonema.

O episódio evidenciou também que a grande imprensa brasileira se acomodou ao uso de uma agenda viciada e se contenta com uma única "fonte". Se ela começa assim na pré-história do governo Collor é sinal de que os leitores terão muitas barrigas para segurar nos próximos anos.

RETRANCA

- Sou obrigado a voltar ao caso do racismo/prefeito de Washington. A Folha não reconhece o erro nem leva em conta que feriu a sensibilidade de muitos leitores ao ficar repetindo que o "prefeito negro" foi pego fumando crack, se diz vítima do FBI ou que se internou numa clínica. Tudo começou no sábado retrasado quando este jornal noticiou em manchete: "Polícia pega prefeito negro de Washington com droga em festa".

- Apesar das reclamações de leitores (algumas registradas aqui na semana passada), o jornal continuou mantendo a palavra "negro" em títulos, como se o fato de Marion Barry pertencer a esta raça tivesse importância fundamental na notícia.

- Na terça-feira, o editor de Exterior, Jaime Spitzcovsky, escreveu artigo lançando a suspeita de que o prefeito Marion Barry teria sido preso porque, além de fumar crack, é negro. Na quinta-feira, uma Nota da Redação publicada no Painel do Leitor tentou justificar o erro dizendo que o crack é uma droga "cujo comércio e utilização costumam ser associados, social e culturalmente, aos negros norte-americanos". A nota chegou ao ponto de indicar que cabe ao leitor "corroborar a associação com o crack" e até "julgar que a polícia americana foi racista".

- Estou convencido de que não houve má intenção do jornal no sábado, quando deu a manchete estigmatizando o prefeito, cuja foto estava publicada com grande destaque na própria capa. Mas a redundância na qualificação racial, nos dias seguintes, parece mais capricho de criança turrona do que atitude ponderada de um jornal que se pretende sério.

- A Folha se escuda no "Manual Geral da Redação" para defender-se. A rigor, ele proíbe o que foi feito e jamais deveria ter sido chamado em auxílio. Conforme lembrou a Nota da Redação, pode-se ler no "Manual", no verbete "Preconceito", que "ninguém é qualificado por sua origem étnica, naturalidade, confissão religiosa, situação social, preferências sexuais, deficiências físicas ou mentais exceto quando essa qualificação foi indispensável para tornar completa a informação que o texto veicula". Foi aí que o jornal associou o crack aos negros.

- Primeiro: não se trata de uma informação, mas de uma interpretação associar os negros com a droga em questão.

- Segundo: o jornal parte de outro preconceito para justificar o uso da palavra, o de que o FBI só o prendeu porque ele é negro. Já que pensa assim, então escancarasse na manchete algo no estilão "FBI prende prefeito com droga só porque é negro". É óbvio que o jornal não fez assim porque os fatos nunca lhe darão razão. Em 1983, para ficar num único exemplo, o empresário branco John DeLorean caiu numa armadilha preparada pelo FBI quando pagava 2 milhões de dólares por cem quilos de cocaína.

- A Nota da Redação é tão equivocada que, se levada ao pé da letra, obrigaria o jornal a colocar em títulos que a polícia pegou fulano "branco e rico" com cocaína toda a vez que noticiar fatos deste tipo. Isto porque, geralmente, a cocaína está "social e culturalmente" associada a consumidores brancos e ricos.

- A mesma Nota da Redação comete ainda uma descortesia com o leitor. Parte do princípio de que o leitor deve julgar o FBI racista só porque a Folha colocou "negro" na manchete. Ora, este preconceito pertence somente aos editores da Folha. Sugerir que o leitor "julgue" que a polícia foi racista é ir muito além da objetividade possível nas entrelinhas de uma manchete escandalosa.

- Enfim, acredito que o jornal analisou apaixonadamente a reação dos leitores, feriu suas próprias regras, acabou sendo racista ao redundar no erro e, pior, se enrolou em outro preconceito ao julgar o FBI racista.


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