Folha de S. Paulo


Petismo, Paulo Francis e o mito de Narciso

A Folha está ficando com fama de petista. A corajosa manchete do dia 16 de novembro, onde ela apontou Collor e Lula no segundo turno (com base na pesquisa de boca-de-urna do DataFolha), veio reforçar convicções de que o jornal é petista porque foi o único que bancou um resultado que parecia inverossímil em virtude da gangorra de números da Rede Globo. Há um falatório generalizado de que a redação do jornal é petista e, portanto, o jornal seria petista.

O grande desafio desta Folha antes do segundo turno da eleição presidencial, é mostrar a seus leitores que continua um jornal equilibrado e apartidário que nem está com Lula nem contra Collor.

Eu mesmo já declarei que, para se mostrar imparcial, ela foi parcial contra todos os candidatos. Manteve Collor sob marcação cerrada, desinflou números das multidões do PT, interrompeu por sua conta a campanha do Brizola, exagerou ao ver mentiras onde Maluf não havia mentido, combateu a serenidade de Covas -enfim, fez o diabo para falar mal de todos.

O dilema é cruel. Como mostrar que não é petista sem provocar reações de que então "colloriu"? Nesta semana, até a incontinência verbal de Paulo Francis (como define o jornalista Sérgio Augusto) foi chamada em auxílio na tarefa de isolar a imagem petista. Mas, se a operação foi bem-sucedida, o problema é saber como o jornal vai manter-se numa corda-babma cujo equilíbrio é precário porque baseado tanto na destreza do equilibrista quanto nas palmas e vaias da plateia.

Muitos leitores (38 de um total de 69 que chamaram o ombudsman) ligaram na quinta e na sexta-feira para reclamar. Eram simpatizantes do PT. Apenas três fizeram questão de afirmar que nada tinham a ver com o partido. Todos se queixaram do "exagero" da manchete de quinta-feira e da "brutalidade" cometida por Paulo Francis contra Lula.

Collor deu sua entrevista no Sul dizendo que os eleitores de Lula "elegeram uma proposta radical, que prega a revolução armada e a conquista do poder pelo derramamento de sangue". O jornal não teve dúvida: "Collor diz que PT prega banho de sangue", manchetou. Ainda na capa, recorria a uma crônica de Paulo Francis, publicada na Ilustrada, para compor o quadro isola PT: "Lula coloca o país no nível da Nicarágua". No dia seguinte, os canhões se voltaram contra a prefeita petista: "Erundina pagará IPTU menor em 90 se projeto for aprovado". Lido apenas o título, tem-se a impressão de que a prefeita está tentando mudar as regras do imposto em benefício próprio.

Por sugerir o benefício próprio, esse título sobre Luiza Erundina não colabora para uma boa imagem da Folha. Não precisa ser petista para ver que ele indica, mais uma vez, uma marcação injusta. A manchete do banho de sangue é discutível -porque Collor não usou a expressão "banho"-mas jornalisticamente está correta. O uso do texto do Paulo Francis na capa, no entanto, provocou polêmica, deu o que falar. Provou que naquele dia deu certo a estratégia de bater no PT.

Há uma diferença sutil entre o jornalista Paulo Francis que escreve nas seções de Exterior, ou Economia, e o da Ilustrada. Ali, no caderno de artes e espetáculos, ele tem uma coluna de uma página, duas vezes por semana, coisa única na imprensa brasileira. Ele conquistou esse espaço por força de suas ideias e de um texto tonitruante. Paulo Francis é talvez o único jornalista brasileiro sobre o qual todos os leitores têm uma opinião. A favor ou contra, mas uma opinião. Mesmo os que o detestam o lêem. Recebi telefonemas de leitores sugerindo que a Folha deixe de publicá-lo. Atendi a uma delegação de negros pedindo que a Folha censure suas afirmações preconceituosas. Para fazer esses pedidos é necessário lê-lo. Ninguém passa indiferente por seu texto.

Não se deve cobrar jornalismo nesse tipo de artigo que Francis faz. Ali ele é mais o Francis ficcionista, o cronista dos tempos. Diz besteiras e coisas sábias. Escreve o que muitos pensam e não usam falar em voz alta. É preconceituoso, vulgar, chuta alguns dados, é o Paulo Francis de sempre -irreverente e destemido. No seu artigo publicado ontem no caderno Diretas-89, por exemplo, chamou Collor de "fedelho". Sei que vou receber telefonemas amanhã sobre isso. Francis não tem compromisso com ninguém, a não ser com sua cabeça, cuja memória e capacidade de reflexão poucos brasileiros possuem igual.

Paulo Francis é chamado à capa da Folha em momentos delicados. Isto porque, no limite, encarna o que o jornal pretende ser. Sua independência e seu narcisismo servem inconscientemente de espelho para o jornal. Mas as imitações correm o risco de terminar em paródias. Francis, com seu destempero verbal, já provou sua condição de cético obstinado, ranheta mor do país. E a Folha muito afoita em escancarar independência, pode transformar o destempero em distorção. Pode acabar dependente de seu próprio espelho e, como Narciso, consumir-se na sua própria contemplação.

RETRANCA

- O ministro Roberto Cardoso Alves mandou carta ao ombudsman para contestar duas informações dadas esta semana no "Painel" da Folha. Ele nega que tenha pedido um encontro com o candidato Collor de Mello e que o tenha chamado de "ex-cabo eleitoral do sr. Paulo Maluf". Como faço com as reclamações que me chegam às mãos, fui checar a origem da nota. Descobri que a primeira delas vinha de fontes impalpáveis como o "Ministério" e o "comitê de Collor". Mas a segunda nota, a da declaração sobre Maluf, foi ditada à Folha por Dirceu Coutinho, um assessor do próprio ministro. Telefonei para Cardoso Alves para dar conta do que havia apurado. Ele me pediu que publicasse suas negatives e lhe mandasse uma carta com o nome do assessor. Prometeu que iria apurar o ocorrido e demiti-lo se fosse o caso. Eu respondi ao ministro que só não poderia mandar a carta como podia publicar a informação no jornal. Ei-la aí, com a devida concordância do pessoal do "Painel".

- Dois leitores reclamam do cheiro e da tinta usados pela Folha. O leitor Wilson Sato (de São Paulo) percebeu que o odor do jornal mudou, está muito ácido e a tinta suja ainda mais suas mãos. O departamento industrial esclarece que realmente a Folha vem sendo impressa num papel diferente, de procedência argentina. Em contato com a tinta, ele tende a ter um odor mais característico. A impressão também exige um "balanço" próprio entre as tintas, o papel e o grau de umidade ambiental. É isto que está sendo feito pelo jornal com a ajuda dos fabricantes tintas.

-Nem só sobre a Folha este ombudsman recebido reclamações. Dois leitores de "Veja" ligaram esta semana para cá indignados com a revista. Na reportagem sobre a arrancada de Lula, publicada na semana passada, a revista referiu-se ao novo prefeito de Nova York como o "preto" David Dinkins. O publicitário Francisco Abreu (de São Paulo) e o gerente de vendas Alfredo Arantes (de Belo Horizonte) acham o termo ofensivo e preconceituoso. Preferiam ler "negro" no seu lugar. Arantes chega a considerar "revoltante e repugnante" o uso da palavra. Na "Veja", me dizem que não houve preconceito nem intenção de racismo e que, no Brasil, as palavras se equivalem.

- Num dos programas "Vamos Sair da Crise", fa Gazeta, o jornalista Ricardo Setti, do "Jornal do Brasil", criticou o uso abusivo do termo "Liberar" no noticiário político. Setti dizia o quanto é arcaica essa expressão quando significa que um político "liberou" outro para votar em fulano ou sicrano. O emprego do termo carrega consigo a ideia do voto de curral, do cabresto político. A Folha, "O Estado" e "O Globo", por exemplo, usaram e abusaram dessa expressão nesta semana quando noticiaram que o presidente José Sarney teria "liberado" seus amigos para votar em Collor de Mello. Usar o termo sem o menor distanciamento e acriticidade dá-lhe legitimidade. Como se fosse normal "liberar" alguém para votar em fulano. Não é porque a política brasileira mantém hábitos medievais que os jornais devem repetir termos que eternizam esses costumes.

- Agora, dois meses depois que começou o trabalho do ombudsman, já é possível quantificar o número de cartas enviadas à Folha. O "Painel do Leitor" recebe uma média de 40 cartas por dia e o ombudsman 12 cartas. Isto dá uma média de 53 cartas de leitores administradas diariamente pelo ombudsman e pelo redator do "Painel do Leitor". Nesse tempo, o "Painel do Leitor" publico em média 10,7 cartas por dia. 53% das cartas enviadas à seção foram sobre a sucessão presidencial. 60% das cartas ao ombudsman se referiam diretamente à Folha. Dessas, mais da metade eram de críticas. Entre o total de cartas sobre a Folha recebidas, 65% eram de críticas e 35% de elogios. O mais curioso é que 83% destas cartas publicadas no "Painel do Leitor" eram contra o jornal.


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