Folha de S. Paulo


Manchete, matemática e umbigo

Na madrugada do dia 4 de novembro de 1948, o então candidato democrata à Presidência dos EUA, Harry Truman, viajava de Kansas City para Washington. Seu trem parou em Saint Louis, no Misouri, e alguns partidários lhe trouxeram um exemplar do "Chicago Daily Tribune". Truman pegou o jornal e posou com ele para as fotos, sorrindo. A manchete era garrafal: "Dewey derrota Truman".

Thomas Dewey era o candidato republicano e as pesquisas eleitorais lhe davam vantagem. O Gallup apontava 49,5% de votos para Dewey e 44,5% para Truman. No Instituto Roper, a sondagem indivava 52,2% para Dewey e 37,1% para Truman. Baseado nessas pesquisas, o "Chicago Daily Tribune" decidiu estampar sua manchete conclusiva. Com o início da apuração, e das projeções pró Truman, o jornal ainda conseguiu mudar a manchete nas rotativas. Mas uma boa parte da tiragem havia rodado e estava nas ruas, um dos exemplares nas mãos de Truman. O fato e a foto entraram para a história dos Estados Unidos. Truman elegeu-se com 53,4% dos votos, Dewey teve 45,9%.

Uma foto semelhante pode ser feita agora no Brasil. São dois os grandes jornais que entraram na disputa do título de "Chicago Tribune Tupiniquim": esta Folha e o "Jornal do Brasil".

Foi a Folha a primeira a sair na raia ao anunciar a passagem de Luis Inacio Lula da Silva para o segundo turno. Ela o fez na manchete de quinta-feira, com base na pesquisa de boca-de-urna de seu instituto de pesquisas: "Collor e Lula se enfrentam na decisão daqui a um mês". Repetiu a dose na sexta: "Collor e Lula já disputam voto centrista para ganhar a eleição".

Na mesma sexta-feira, o "Jornal do Brasil" lançava outra certeza em manchete: "Votos do Rio e do Sul salvam Brizola de Lula". Dizia, em texto publicado na sua primeira página, que os 4,25 milhões de votos de vantagem de Leonel Brizola no Rio e na região Sul eram "capazes de lhe assegurar o direito de enfrentar" Collor de Mello no segundo turno.

Não se pode dizer que os jornais costumam brincar com seus leitores. Tanto que o "Jornal do Brasil" abriu na edição de ontem a porta para seu recuo no caso da passagem de Lula para o segundo turno. Lançou outra manchete, quase pedindo desculpas pelo arroubo da véspera: "Só número final dirá se é PT ou PDT".

A Folha manteve-se firme na projeção dos números de seu instituto. Isto causou profunda indignação junto a uma parcela dos seus leitores e congestionou a linha telefônica aqui do ombudsman. Dos 55 telefonemas que atendi pessoalmente desde quinta-feira, 35 foram de leitores chateados com o jornal. "A manchete é prematura e alarmista", disse o carioca Renato Martins. "Mesmo que a Folha acerte ela cometeu um erro absurdo", lançou o gaúcho Luís de Barcellos Boehl. "A Folha já quebrou a cara, mesmo que dê Lula, porque foi irresponsável", garantiu o paulista Luís Carlos de Arruda. Outro paulista, Antônio Carlos Guedes, afirmou que os "moleques" estão tomando conta do jornal e me incluiu entre eles nesta "puxação de saco do Lula". Nem tudo foi crítica, porém. Do Paraná (Londrina) ligou ontem à tarde o leitor Celso Aarão para "cumprimentar a Folha pela ousadia de apontar o Lula no dia 16". Ele tinha acabado de ver o jornal "Hoje", da Globo, que indicou a vitória para Lula.

Na crítica interna que faço diariamente do jornal, escrevi que a Folha tinha saldo com uma manchete "corajosa", um título que deixava clara a credibilidade do jornal na cientificidade das pesquisas de opinião. Critiquei também a maneira morna como os outros jornais entraram no caso. Falei da segurança tática de "O Globo": "Collor vence primeiro turno por larga margem; disputa entre Lula e Brizola é voto a voto". Do nada dizer do "Jornal do Brasil", que congelou sua capa: "Voto obriga política a mudança geral". Do ridículo da manchete de "O Estado" ao repetir o que todos os brasileiros sabem há meses: "Collor já está no segundo turno".

Um jornalista da revista "IstoÉ/Senhor" me ligou para saber se eu daria a mesma manchete da Folha se estivesse na Redação. Respondi afirmativamente. O DataFolha foi o único instituto que previu uma margem maior de vantagem para Lula. Não havia razão para o jornal deixar de prestigiá-lo. O risco do efeito "Truman-Chicago Tribune" estava presente mas, entre o "feeling" e a matemática, não há porque duvidar desta última. E mais, em 1989, presume-se que as técnicas dos institutos de pesquisas tenham desenvolvido métodos capazes de apurar as viradas de humores de última hora.

É realmente discutível se um jornal deve arriscar sua credibilidade ao bancar resultados de pesquisas que estão, no limite, na margem de erro. A Folha jogou na arena não só a sua credibilidade como a do DataFolha. Arriscou duplamente. Preferiu ficar com as suas contas enquanto assistia-se na mídia uma esquizofrenia de números rebocada pela apuração extra-oficial da Rede Globo. Na sexta-feira, praticamente toda a imprensa brasileira entrou na gangorra da Globo, o que veio confirmar o poder de fogo da emissora carioca.

Mas há uma omissão clamorosa da Folha neste epsódio. Omissão que só se explica por uma necessidade neurótica de manter a palavra empenhada, de repisá-la mesmo quando todos já decoraram o que foi dito e publicado. A apuração oficial do TSE mostra que as quantidades de votos de Brizola e Lula são parecidas. Ao deixar de dar destaque a este fato real da apuração, a Folha deu mais importância jornalística à sua própria manchete do que à necessidade de mostrar -também-que os dois maiores candidatos da esquerda estão montados em forças eleitorais semelhantes. Dividem pau a pau os votos na esquerda. Ao partir para a defesa apaixonada de sua manchete, a Folha reincidiu num equívoco que a persegue faz tempo. Reforçou a opinião dos que consideram o jornal mais voltado para seu próprio umbigo do que para as notícias.

Ontem à tarde as projeções apontavam a vitória de Lula. As da Rádio Jornal do Brasil davam Brizola. Hoje, o Brasil sabe com certeza quem estará no segundo turno. Se a Folha levar o tombo, ela arrasta consigo a credibilidade do DataFolha. Se for o "Jornal do Brasil", ele cai sozinho, incapaz de fazer contas aritiméticas. Mas saiba o leitor que o erro de 1941 não acabou com o "Chicago Tribune". Ele é hoje o sexto jornal dos EUA em circulação, vende 765 mil exemplares por dia.

SOBRE A CONFIABILIDADE NA FONTE DE INFORMAÇÃO

- A semana foi "quente". O ombudsman atendeu a 157 telefonemas, mais de 30 por dia. O recorde de ligações foi batido na segunda-feira quando recebi o maior número de ligações desde que foi criada esta função. 53 leitores chamaram o ramal 2896. Desses, 27 criticaram com veemência a Folha na cobertura do comício de Lula na praça da Sé, em São Paulo, e da passeata promovida pelo PT da Sé até a avenida Paulista. Em geral, foram duas críticas: os leitores discordavam do número de participantes no comício apresentado com base em contagem do DataFolha (63 mil pessoas) e da falta de cobertura jornalística da passeata, que levou 1 hora e 30 minutos para chegar até a Paulista.

- A Folha realmente errou ao não cobrir a passeata. Engavetou um fato importante da semana. Mas o mais importante nesta história é a respeito da quantidade de gente que cabe na praça da Sé. Praticamente todos os leitores que ligaram fizeram a comparação das fotos do comício de domingo passado com as do comício das diretas-já, realizado na mesma praça em 25 de janeiro de 1984 e cuja fotografia a própria Folha trouxe na sua edição de domingo. Elas eram quase idênticas. Em 1984, a Folha contou 300 mil pessoas, "nas ruas, pelas diretas". Mesmo que não tenha afirmado que as 300 mil estavam na praça da Sé, o jornal usou esse número e ele virou referência não só dos leitores como do próprio Partido dos Trabalhadores, que calculou a participação de 300 mil pessoas no comício de encerramento da campanha de Lula em São Paulo.

- As queixas dos leitores desnudaram, no entanto, um dado irrefutável: a Folha não estava correta em uma das duas ocasiões. Ou errou ao dizer que eram 300 mil em 84 ou agora ao contar 63 mil. Um longo texto publicado pelo jornal na terça-feira, no caderno Diretas-89, assumiu a responsabilidade de explicar aos leitores o que havia acontecido. Nele, a Folha fez uma confissão solene: não tem como sustentar a cifra apresentada em janeiro de 84. "O número registrado pela Folha foi uma avaliação de repórteres", explica o texto ao se referir à campanha pelas diretas-já. Hoje, o jornal se escuda numa mediação mais objetiva para afirmar que havia 63 mil pessoas na praça da Sé domingo passado. Mas, como as fotos comprovam, a quantidade de pessoas ali é quase igual nas duas ocasiões. Por isso, eu posso afirmar uma coisa que a Folha não afirmou, algo que dá razão aos reclamantes: havia tanta gente na praça da Sé neste domingo quanto no comício das diretas em 84.

- Acrescento apenas um dado relevante para os leitores: dos 27 reclamantes que telefonaram só três fizeram questão de dizer que não são petistas.

- O leitor desta coluna já acompanhou uma discussão entre este ombudsman e o diretor da Redação do jornal "O Estado de S.Paulo", Augusto Nunes. Publiquei uma carta onde ele procurava contestar uma informação que dei. Desta vez fui eu que escrevi ao "Estado" para expressar minha opinião sobre uma nota publicada pelo jornal na sexta-feira. Ela reproduzia uma notícia de "O Globo", fazia uma "cozinha" (no jargão jornalístico significa que alguém reescreveu texto publicado em outro veículo de comunicação) de uma reportagem onde se dizia que a direção da Folha pensou em reavaliar a pesquisa de boca-de-urna do DataFolha antes de sua publicação, na quinta-feira, e que isto só não teria sido feito porque a pesquisa tinha sido divulgada na televisão. O que mais me irritou, no entanto, foi o último parágrafo da notinha, referente à Folha "Seu ombudsman certamente explicará tudo, como faz aos domingos".

- Assim que vi a nota, mandei o seguinte bilhete ao jornalista Augusto Nunes: "'O Estado' prefere 'cozinhar' notícias mal apuradas de 'O Globo' (vide a primeira nota de hoje na coluna Canal 3) em vez de verificá-las, como manda o 'cuidado com a precisão' -conforme vocês dizem. Quando é que 'O Estado' vai criar um ombudsman para defender os leitores diariamente enganados pelo seu jornal?"

- O bilhete saiu do prédio da Folha no início da tarde e antes que a noite caísse chegou a resposta de Augusto Nunes: "No 'Estado', o trabalho de um ombudsman é feito por quem dirige a Redação. Se algum dia esse cargo existir por aqui, será contratado alguém que saiba escrever, não seja grosseiro e tenha independência: não é o seu caso, evidentemente. Não se esqueça de mandar uma cópia do seu bilhete ao Otavinho: ele talvez fique grato por tamanha sabujice. Um último conselho: esqueça o 'Estado' e preocupe-se com a Folha. Ela merece". Está assinado: "Augusto".

- Com a publicação dos dois bilhetes, o leitor pode avaliar quem é grosseiro e independente. Tem condições até de conferir se o "Estado" publicou a minha carta ou enfurnou-a como faz com as críticas e refutações de noticiário que recebe. O exame da independência também pode ser feito no acompanhamento de minhas colunas, onde o leitor verifica inclusive o meu português que, sem dúvida, não é igual ao de Augusto Nunes.


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