Folha de S. Paulo


Teoria e prática

Recorro mais uma vez ao "Manual da Redação" da Folha. Diz, na página 62, o verbete "Didatismo":

"Qualidade essencial do jornalismo e um dos objetivos básicos do Projeto Folha. Todo texto deve ser redigido a partir do princípio de que o leitor não está familiarizado com o assunto. Explique tudo de forma simples, concisa, exata e contextualizada."

Isso é a teoria. Eis, agora, algumas práticas, consideradas apenas edições da semana passada:

1) Reportagem sobre declarações dadas a respeito da América Latina pelo economista norte-americano John Williamson, um dos criadores do "Consenso de Washington", não explicava o que significa esse "consenso";

2) Relato com afirmações do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, nas quais ele citava os poetas João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, ambos já mortos, não trazia aqueles parênteses com os anos de nascimento e de morte dos poetas, dando a entender, para leitores menos esclarecidos no assunto, que ambos ainda vivem (ou, para os esclarecidos, que o jornal acha que eles ainda vivem);

3) Reportagem informando que o governo prorrogou o prazo de inscrição para financiamento de estudos mencionava a aplicação da Tabela Price, sem explicar o que isso quer dizer nem indicar como fazer para sabê-lo;

4) Idem para outro texto, sobre saúde, no qual aparecia a sigla Sars, igualmente sem registro sobre seu significado;

5) No noticiário de sexta-feira sobre o caso de corrupção de menores em que são acusados políticos e "notáveis" de Porto Ferreira (SP), não havia nenhum mapa a mostrar para o leitor onde fica essa cidade;

6) Ao fazer referência às chacinas da Candelária e de Vigário Geral, no Rio, uma reportagem sobre documento da Anistia Internacional não incluía nenhuma "memória" a respeito do que foram esses eventos.

Um dos trunfos que diferencia o jornal de outros meios de comunicação é sua capacidade de permitir maior aprofundamento de temas e acessibilidade, para o leitor, ao conteúdo do que se está falando (no caso, escrevendo).

Ao abrir mão disso ou ao relegar a segundo plano essa "qualidade essencial do jornalismo", a Folha não só deixa de cumprir aquilo que seu próprio "Manual" indica como corre o risco de alimentar em muita gente (em especial os mais jovens) a sensação de que, havendo TV, rádio e internet, o jornal impresso talvez não seja tão indispensável quanto parece.

UM MÉXICO A MAIS

Eis um caso revelador de como jornalistas encontram, muitas vezes, dificuldade para lidar com estatísticas.

Na terça-feira, reportagem sobre relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) informava que, segundo a instituição, havia, em 2002, 220 milhões de pobres na América Latina (43,4% do total da população), além de 95 milhões de indigentes (18,8%).

Pobres são os que têm renda suficiente apenas para adquirir bens de necessidade básica; indigentes, nem isso.

Na crítica interna, fiz uma pergunta: e os outros 38% da população? Como se dividem em classe média, ricos, muito ricos? Não houve resposta.

Alertado depois por uma reportagem sobre o tema no diário espanhol "El País", porém, consultei o relatório no site da Cepal e constatei, como se diz, que o buraco era mais embaixo.

À minha dúvida, o relatório, de fato, não respondia, mas, em compensação, ele desmentia o que a Folha publicara.

Na verdade, o número de 220 milhões inclui os 95 milhões de indigentes, sendo estes considerados uma espécie de categoria dentro do total de pobres. Um "Erramos" deve estar publicado na edição de hoje (pág. A3).

Pelos dados inicialmente divulgados na Folha, o total de pobres e indigentes crescia, simplesmente, quase um México (cerca de 100 milhões de habitantes). Não é pouca coisa.


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