Folha de S. Paulo


O tiro e a foto

Muito se escreve e se teoriza sobre a idéia de que a fotografia, no jornalismo, não deve ser só elemento auxiliar do texto, uma imagem mais ou menos bem acabada que o editor usa para equilibrar esteticamente a página ou, em muitos casos, simplesmente para tapar buraco.

Na prática, porém, são raros os momentos em que as fotografias ganham vida própria, intensidade, relevância e repercussão superiores, até mesmo, às do texto.

Pois isso aconteceu nas edições de quinta-feira do "Agora" -jornal editado pelo Grupo Folha- e da Folha nas reportagens sobre a morte do fotógrafo Luis Antônio da Costa, da revista "Época", assassinado durante alvoroço ao lado do acampamento dos sem-teto em São Bernardo do Campo (SP).

O mérito, aqui, coube ao repórter-fotográfico André Porto, do "Agora", que, unindo instinto, técnica e faro jornalístico num momento único, tumultuado e dramático, registrou um homem com uma arma na mão em fuga logo após o disparo que matou Costa.

Nos dias seguintes, viu-se mais: a sequência de fotogramas permite, na verdade, identificar também a possibilidade de outros suspeitos, como a Folha publicou ontem.

Esta coluna, em regra, registra queixas de leitores, aponta ou comenta falhas dos meios de comunicação. Peço licença, excepcionalmente, para fazer uma pequena alteração, dando espaço a um resumo de um depoimento de André Porto, 30, com quem conversei ao telefone na noite de sexta-feira, sobre seu trabalho:

"Foi tudo muito instintivo, rápido, mas também tive de fazer um raciocínio técnico: estava com uma lente grande-angular, que abrange uma área ampla de visão, sabia que tinha filme e lembrei que estava sem flash. Vi então que podia e devia fazer o registro sem ser notado."

"Levantei a máquina e disparei, para ter uma sequência, sem olhar no visor. Se não fizesse ali, naquele instante, nunca mais."

"Minhas pernas tremiam muito. Não tinha certeza absoluta de tudo o que eu ia conseguir captar na hora. Apareceu a chance de identificar um provável assassino. A foto diz muito mais do que o que eu sabia no instante em que a fiz."

"Tive uma reação de jornalista mas também de cidadão, de produzir um testemunho valioso."

"A situação é bastante chata. Não deu para sorrir. Sinto agora até um pouco de vergonha de estar feliz por causa disso, mas foi o que de melhor eu pude fazer naquela hora."

*

A Folha teve o mérito, nessa cobertura, de editar na Primeira Página a fotografia a que me referi, mas cometeu, a meu ver, um equívoco -também relativo a imagens.

Foi ao não publicar, nem mesmo nas páginas internas, a fotografia de Luis Antônio da Costa sendo carregado por algumas pessoas, divulgada, diga-se, em todos os jornais.

Para a secretária de Redação Paula Cesarino Costa, a imagem era "chocante" e "sem carga informativa relevante, que valesse sua publicação".

"Que informação a foto do corpo do fotógrafo ensanguentado acrescenta ao texto que diz que o fotógrafo foi morto com um tiro?", indaga a jornalista.

Ela nega, por outro lado, a hipótese de que a decisão tenha derivado de alguma espécie de corporativismo pelo fato de a vítima ser um jornalista: "Faríamos da mesma maneira se fosse um engenheiro ou um arquiteto".

A publicação de uma foto como essa é, como sempre, polêmica -entre jornalistas e entre leitores- e envolve certo grau de subjetividade.

Penso que essa imagem, embora forte e impactante, não veste a camisa do sensacionalismo. Foi tirada à distância; não se vê, nela, o rosto da vítima. Ela adiciona, por outro lado, uma informação visual capaz de enriquecer a reportagem, transmitindo com mais nitidez ao leitor, sem chegar a agredi-lo, toda a dramaticidade do evento e dos seus momentos imediatamente subsequentes.

Estaria, assim, dentro do limite do publicável, em página interna, num jornal como a Folha.

SÍNDROME DE AVESTRUZ

A estréia de uma peça teatral em São Paulo, na semana passada, trouxe de volta à tona uma questão delicada que já havia produzido algum barulho três anos atrás: a suposta existência de um filho fruto de suposto relacionamento extraconjugal do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Naquela ocasião, questionada sobre o fato de não dar nada sobre o assunto, a Folha publicou (em 11 de abril de 2000) duas notas sequenciais na coluna Painel explicando a sua posição.

Para o jornal, em resumo, tratava-se de rumores, sem confirmação de nenhuma das partes nem disposição delas para levar o caso a público, além de envolver uma criança de oito anos; inexistindo interferência do caso na administração pública ou reclamação de uma das partes em relação à outra, o tema deveria ficar na "esfera particular".

E a coluna concluía: "O jornal pretende manter essa posição, a menos que o material publicado [na ocasião, pela revista "Caros Amigos"] produza consequências políticas de relevo".

Embora reconheça que ela é polêmica, estou de acordo com essa posição conceitual. Ocorre que as circunstâncias trataram de reanimar o caso, agora, sob outra forma, na voz fictícia do senador Zé Otávio, personagem principal da peça "A Flor do Meu Bem-querer", de Juca de Oliveira.

A frase, reproduzida no "Jornal da Tarde" de terça-feira (22), seria a seguinte:

"Lula assumiu a filha e perdeu a eleição. Depois ganhou porque o brasileiro tem memória curta. O Bush tá no poder por causa daquela palhaçada do Clinton com a Monica Levinsky. O próprio Fernando Henique teve um filho
fora do casamento mas escondeu e o mandou pra Espanha com a mulher senão ele teria perdido a eleição".

O que fazer, em termos jornalísticos?

Na sexta-feira (18), a coluna Mônica Bergamo registrara -num importante furo- o constrangimento de políticos tucanos que tinham ido a uma pré-estréia do espetáculo. Apesar de deixar claro que o assunto era a "vida pessoal" do ex-presidente da República, não explicitava, porém, a menção do "senador" ao suposto filho.

Na terça (22), enquanto o "JT" publicava a tal frase, uma reportagem na Ilustrada, de apresentação da peça -que estrearia no dia seguinte-, nem sequer tocava no espinhoso trecho.
Não sei se Juca de Oliveira bolou tudo de propósito, de olho na publicidade que angariaria para sua peça. Isso é outra questão.

O fato é que a sua repercussão cobra do jornal, outra vez, alguma explicação para não tratar do tema a não ser de modo tangencial, indireto, como tem feito até agora.

Assim como concordo com o princípio da argumentação usada em 2000, considero que, com o comportamento atual, a Folha fere outro de seus caros princípios: o da transparência.

Dada a segunda onda pública do "affair", mais estrepitosa do que a primeira, o jornal deveria, no mínimo, justificar essa deliberada omissão novamente (após três anos) aos seus leitores -milhares dos quais, como parece óbvio, assistirão "A Flor do Meu Bem-querer".


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